Nordeste entra no sexto ano do que pode ser a pior seca de sua história
Nordeste entra no sexto ano do que pode ser a pior seca de sua história
As carcaças de cágados no piso seco do Cedro, primeiro grande açude do Ceará, construído ainda no século 19, são uma imagem triste e impactante desta que já é a maior seca do registro histórico no Estado, iniciado em 1910 (e provavelmente na região Nordeste como um todo)
![]() Carcaça de vaca no interior da Bahia durante a seca recorde. |
Alexandre Costa (*)
Com efeito, o período de 2012 até 2016 igualou-se ao de 1979 a 1983 como a mais prolongada sequência de anos com chuvas abaixo do normal em território cearense e a média de cinco anos é a menor jamais registrada (521 mm, contra 566 mm para 1979-1983). No Nordeste como um todo, segundo a Agência Nacional de Águas, a seca excepcional, de categoria máxima (a mais intensa da classificação, com perdas generalizadas na agropecuária, comprometimento dos corpos hídricos e impactos de longo prazo sobre o ecossistema) se alastrou por todos os Estados, do Maranhão à Bahia.
Graças à combinação de ações de convivência com o semiárido (como o programa de cisternas), programas sociais e intervenções de infraestrutura hídrica, os maiores dramas históricos do Nordeste, a migração em massa e os saques, ainda não se manifestaram, pelo menos não na escala vista até mesmo há poucas décadas. Mas isso não quer dizer que a situação não seja grave. A economia tem sido brutalmente afetada, com perdas acumuladas, só de 2012 a 2015, da ordem de R$ 104 bilhões e um recuo médio no PIB de 4,3% ao ano.
O colapso hídrico já atingiu não apenas comunidades rurais, mas inúmeras cidades do interior, como foi o caso de Crateús, onde filas intermináveis se formaram para que as famílias tivessem acesso à água de um poço com dessalinizador, no limite de 40 litros por família por dia, quantidade bastante aquém da recomendação da Organização Mundial da Saúde para beber, cozinhar e fazer higiene
Hoje, o colapso ronda as metrópoles da região. O monitoramento do Instituto Nacional do Semiárido (Insa) e do Portal Hidrológico do Ceará mostra que a maior parte dos açudes encontra-se abaixo dos 10% em volume, incluindo os reservatórios de grande porte, críticos para o abastecimento urbano em larga escala. É o caso do Castanhão, principal fonte de abastecimento para a Região Metropolitana de Fortaleza, cujo estoque de água corresponde a meros 4,9% do seu volume, assim como do Banabuiú, terceiro maior reservatório cearense (0,4%) e do Boqueirão (4,1%), importante açude paraibano. Em situação não muito melhor estão o Armando Ribeiro Gonçalves (Rio Grande do Norte, com 13,7%), e o Orós (Ceará, 11,6%).

Eventos extraordinários como esse dificilmente podem ser associados a uma única causa. É verdade que o Nordeste setentrional é particularmente sensível à variabilidade climática natural, com as chuvas tendendo a diminuir ou aumentar de acordo com os padrões de temperatura oceânica no Pacífico e Atlântico. No momento, os modos de variabilidade de longo prazo em ambos os oceanos estão em fase desfavorável para as chuvas na região.
Embora a chamada variabilidade interanual permaneça, essa variabilidade de mais longo prazo (decadal a multidecadal) a modula, aumentando probabilidades maiores de ocorrência de eventos de El Niño, no Pacífico, e de aquecimento anômalo na porção norte da bacia do Atlântico, em ambos os casos contribuindo para a redução das precipitações.
A degradação ambiental na escala local, com o desmatamento comprometendo matas ciliares e nascentes e assoreando rios e reservatórios também precisa ser colocada nessa contabilidade. Uma inadequada e insuficiente política de resíduos e saneamento contribui também para o comprometimento da qualidade da água na região.
Mas é preciso dizer que a vulnerabilidade da região é amplificada por conta das escolhas dos modelos de desenvolvimento. A multiplicação das obras hídricas não levou em conta em geral as necessidades da maioria da população e visou essencialmente ao favorecimento de determinadas atividades econômicas, como o agronegócio e setores industriais hidrointensivos.
É particularmente gritante a instalação de termelétricas fósseis na região que tem a maior vocação para geração de eletricidade a partir das fontes solar e eólica. Sugere um misto de irresponsabilidade, ignorância e, sobretudo, atendimento a lobbies corporativos e interesses econômicos escusos. A maior dessas usinas, localizada no Complexo do Pecém, no Ceará, é capaz de consumir até 800 litros de água por segundo, o equivalente ao consumo de uma cidade de meio milhão de habitantes, além de emitir mais CO2 do que todo o setor de transportes do Estado, conforme dados do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa).

As projeções climáticas para o Nordeste brasileiro apontam em geral para um clima mais seco, mesmo que a precipitação total média não se reduza, com a evaporação e evapotranspiração acompanhando a escalada das temperaturas. Embora ainda não se tenha o conhecimento científico necessário para estabelecer isso, é possível que estejamos em plena alteração da “normal climatológica” para a região.
É possível até que a perda acelerada de gelo no hemisfério norte, que já começa a alterar as correntes do Atlântico, interferindo na distribuição de calor, tenha alguma conexão com condições recorrentes de seca, já que a posição da Zona de Convergência Intertropical – principal sistema das chuvas na porção setentrional do Nordeste – é fortemente ditada pelos padrões térmicos oceânicos.
O Nordeste precisa se preparar para enfrentar as mudanças globais do clima e os desafios locais de justiça socioambiental. Precisa cuidar de seus aspectos mais vulneráveis: preservar o bioma singular da caatinga, fundamental para manter solo e rios; zelar pelos seus estoques hídricos em todas as escalas (das cisternas aos maiores reservatórios) e utilizá-los de forma parcimoniosa; reavaliar o modelo de desenvolvimento, privilegiando a agricultura familiar e cadeias industriais de baixo impacto ambiental e hídrico.
E pode também fazer valer suas virtudes e vocações: fortalecer a resiliência das comunidades, aprendendo não apenas com o conhecimento acadêmico, mas também pela sabedoria dos povos tradicionais; aproveitar as fontes energéticas renováveis, especialmente a solar, aliando seu potencial de geração de empregos (atestada pelo relatório do Departamento de Energia dos EUA que mostra que a solar responde por nada menos que 43% da mão-de-obra empregada naquele país em geração de eletricidade) com a economia de água e corte nas emissões de CO2 (Observatório do Clima/ #Envolverde).
(*) – É físico e professor de Ciências Atmosféricas da Universidade Estadual do Ceará. É integrante do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e autor do blog O Que Você Faria se Soubesse o que Eu Sei?/Envolverde.