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‘Velho Chico’ está cansado e não tem forças para chegar até o mar

em Especial
sexta-feira, 07 de outubro de 2016
Júlio Ottoboni

‘Velho Chico’ está cansado e não tem forças para chegar até o mar

As águas salobras do mar já invadiram sua calha 24 quilômetros adentro, exatos 10% do trecho final com maior oferta de turismo sustentável e que tem colocado a região como o terceiro maior fluxo turístico de Alagoas. Há três anos a situação se complicou de vez, a estiagem e o desmatamento ao longo de se seus trechos mais altos no Sudeste reduziram drasticamente a vazão do rio.

Júlio Ottoboni

A estiagem e o desmatamento reduziram drasticamente a vazão do rio.

Júlio Ottoboni (*)

A denúncia da agonia do baixo São Francisco surgiu no 1º Seminário Internacional de Turismo Caminhos de São Francisco, ocorrido no começo deste mês, e promovido pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS), Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Alagoas, Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, na cidade de Piranhas, em Alagoas. E foi feita para a secretária estadual de desenvolvimento econômico e turismo, Jeanine Pires.

“A água do mar entrou e o rio está azulado, na foz em Piaçabuçu estamos com dificuldades para ter água doce. Já tem tubarão, tartaruga marinha e outras espécies que só tem no mar. O pilombeta que é um peixe comum neste trecho do rio está desaparecendo”, alertou o ambientalista e integrante da Associação Olha o Chico, de Piaçabuçu, Jasiel Martins.

O peixe símbolo, o surubim, que tem uma enorme escultura na praça central de Piranhas, está ameaçado de extinção e praticamente sumiu do rio. A situação era de conhecimento do governo de Alagoas, que tem investido pesadamente no projeto Caminhos do São Francisco, com a grande alternativa turística sustentável e modelo para o país.

Flávio Ferraz, dono da Pousada Velho Chico.“ A questão da crise hídrica não é só o Estado eu irá resolver, os pescadores tem alertado para a questão do rio. Só vejo uma solução se for global, precisamos cumprir as metas estabelecidas em acordos internacionais tanto pelo governo federal como pelos Estados”, comentou Jeanine Pires.

Uma rede de empresários do segmento turístico tem buscado fazer sua parte, pois sabem que o Rio São Francisco é o grande maestro na regência deste novo momento para a economia regional. No hotel Pedra do Sino, em Piranhas, o proprietário Francisco de Assis Clemente, já fez tubulações independentes para captar a água dos quartos, inclusive do ar condicionado, para reaproveitamento. Também tem buscado saídas no uso de energia solar e na captação da água da chuva. “Temos que manter o foco na sustentabilidade”, afirmou.

A consciência preservacionista vai desde a conservação dos casarios históricos das 12 cidades do eixo do programa Caminhos do São Francisco até um processo de resistência cultural. O empresário Flávio Ferraz, dono da Pousada Trilha do Velho Chico, chegou como turismo do Recife e acabou ficando e empreendendo em Piranhas. E a pegada ambiental é hoje fundamental para a sobrevivência de seu negócio.
 “Eu optei pelo turismo de esporte e de aventura. Os meus clientes tem essa consciência, usamos aqui reaproveitamento da água e energia solar, além da fossa verde. Seja na área dos quartos ou no espaço do camping. O que preocupa é ver o rio nesta condição, tem lugar que já temos que sair do caiaque e levar a embarcação no braço até outro ponto para continuar a navegação”, falava com ar sério, mesmo quando brincava com seu cão, de nome Chicão. (#Envolverde)

(*) – Tem 30 anos de profissão, atuou na AE, Estadão, GZM, JB entre outros veículos. Tem diversos cursos na área de meio ambiente, tema ao qual se dedica atualmente. É pós graduado em jornalismo científico.

No São Francisco, triste retrato dos nossos rios

Roberto Malvezzi – Outras Palavras/#Envolverde

“Velho Chico” está vazio. No Amapá, pororoca não existe mais. Em Minas, 1200 pequenos rios foram eliminados. Decadência coincide com expansão da monocultura, mas lucros calam as críticas.

O fenômeno da Pororoca, mundialmente conhecido, já não existe mais, no rio onde mais atraíam os olhos do mundo. Você sabia disso? As águas do Araguari, no Amapá — onde havia campeonatos de surf — já não têm forças para chegar à foz e sofrer a força reversa das águas, o que gerava as ondas. Construíram barragens em seu leito para gerar energia, que vem para o sul do país, além de pisotear suas margens com manadas de búfalos.

O São Francisco, à altura de Pirapora do Bom Jesus (MG). A ponte e seu vão marcam o declínio do rio.As águas do Araguaia estão cada vez mais escassas. Muitos de seus afluentes, antes perenes, agora também são intermitentes. O São Francisco agora terá uma vazão de apenas 700 m3/s. Um rio que, segundo o discurso oficial do antigo governo federal, tinha uma vazão “firme” de 1800 m3/s a partir de Sobradinho. E olha que a transposição sequer começou. Onde Domingos Montagner morreu, na verdade, o que existe é um fiapo de água, em comparação com o que era o Cânion do São Francisco.

O mais emblemático, sem dúvida, é o rio Doce. A tragédia da Samarco não tem precedentes em território nacional, mas está sendo tratada como algo secundário e como se fosse apenas um acidente de percurso.

Se falarmos, então, da qualidade de nossas águas, teremos que lembrar do Tietê e do Pinheiros, a cara, a cor e o cheiro do desenvolvimento de São Paulo. O que acontece não é fruto apenas de como se trata as calhas principais de nossos rios, mas de todo o desmatamento do território dessas bacias.
A destruição do Cerrado – reconhecimento rotineiro nos meios científicos e socioambientais – levará consigo os rios que dependem do bioma. Já em 2004 tínhamos a informação que, apenas no Norte de Minas, cerca de 1200 rios menores tinham sido eliminados. Sem o Cerrado, nos dizem os cientistas, não haverá São Francisco, Araguaia e tantos rios que dependem dos aquíferos do Planalto Central. A criação do Matopiba – território do agronegócio no Cerrado – levará às profundezas esse modelo predador do bioma.

A curva de decadência de nossos rios coincide exatamente com a expansão das monoculturas, seja de grãos, de gado, ou outra qualquer. É só comparar os gráficos a partir da década de 1970. Assim, nesse dia de São Francisco, como os profetas dos tempos antigos, que amaldiçoavam o dia em que tinham nascido, não nos cansamos de trazer más notícias, ainda que sejam em forma de denúncia (Jeremias 20,14-18).

Toda classe política, todo mundo econômico – exceções de sempre – está alguns anos-luz distante de enxergar o país por esse ângulo. Então, prosseguimos em linha reta rumo ao abismo.