Ana Luisa Winckler (*)
O vídeo viralizou: duas crianças discutindo no recreio, uma olha para outra e solta:
— “Seu CLT!”
E ali, entre gritos, lancheiras e risadas, a palavra que já foi símbolo de proteção trabalhista virou deboche — quase um sinônimo de “coitado”.
E sim, eu ri — antes de parar, engolir em seco e pensar:
se até o recreio virou palco de crítica ao mercado de trabalho, o que mais a gente está fingindo que não vê?
Porque se até as crianças entenderam que o mercado de trabalho anda adoecendo mais do que acolhendo, talvez seja hora de escutar com mais atenção. Por trás desse xingamento, tem algo mais profundo: uma geração inteira que não quer repetir o roteiro do cansaço crônico, da estabilidade que prende, da lealdade que não é recíproca.
Na escola pública, o xingamento vem da observação silenciosa da vida real: pais exaustos, jornadas intermináveis e gratidão cobrada em troca de um contracheque que mal cobre o mês.
Na escola particular, o desdém vira fuga criativa: “melhor ser influencer do que funcionário frustrado”.
O problema não está em quem foge — mas no sistema que não convida ninguém a ficar.
E não, isso não é falta de responsabilidade.
É falta de perspectiva.
O que essas crianças estão dizendo — ainda que com gírias e memes — é que o mundo do trabalho precisa mudar. Urgente.
Precisa voltar a ser espaço de pertencimento, de sentido, de trocas justas.
Precisa deixar de adoecer em nome da entrega e começar a cuidar em nome da permanência.
A boa notícia?
A gente ainda pode virar esse jogo.
Mas vai exigir coragem.
Coragem para parar de romantizar a resiliência que esmaga.
Para redesenhar cargos que caibam em corpos humanos.
Para criar culturas onde burnout não seja tratado com meditação, mas com revisão de metas.
Coragem, acima de tudo, para ouvir as novas gerações sem arrogância etária, entendendo que elas não estão perdidas — estão despertas.
Talvez a missão do RH agora seja menos convencer e mais acolher.
Menos planejar para 2030 e mais abrir conversas sinceras em 2025.
Menos defender o sistema… e mais cocriar futuros.
Notificação da Outra Sala:
Se “CLT” virou xingamento no recreio, é porque o trabalho perdeu sua poesia.
Mas dá pra reencantar.
Dá para reinventar.
E talvez o convite comece assim:
“Vamos ouvir de verdade quem ainda tem coragem de debochar?”
Porqueenquanto planejamos carreira em PowerPoint, tem criança planejando como virar nômade digital antes dos 18.
(*) Psicóloga, escritora e especialista em transformar culturas com afeto e coragem. Com mais de 25 anos de experiência em RH, do chão de fábrica ao boardroom, atua na criação de modelos mais humanos de liderança, aprendizagem e pertencimento. Na escrita, mistura ciência, poesia e provocação para abrir espaço ao que não cabe nas atas — mas muda tudo.