Ana Luisa Winckler (*)
Existe um trauma contemporâneo que não aparece em manual nenhum, não dá atestado e raramente vira conversa séria.
Ele não grita. Ele se adapta.
É o trauma da escassez.
Não é só sobre dinheiro, embora às vezes seja.
É sobre crescer aprendendo que querer custa caro. Que pedir incomoda.
Que desejar demais é perigoso. Que, no fundo, é melhor não esperar muito da vida.
A escassez não mata o desejo. Ela faz algo mais sofisticado: encolhe.
Você continua desejando, só aprende a desejar pequeno.
Um cargo “possível”.
Um salário “ok”.
Um sonho “realista”.
E ainda chama isso de maturidade.
A estética do “não preciso”
O trauma da escassez cria personagens socialmente elogiáveis.
A pessoa que diz:
– “Não faço questão.”
– “Pra mim tanto faz.”
– “Não preciso de reconhecimento.”
Parece evolução emocional.
Na prática, muitas vezes é profecia autorrealizável em ação: a pessoa acredita que não vai ter, não pede, não ocupa, e confirma a própria crença de que nunca teve espaço.
Na carreira, isso é devastador.
Gente competente que não se candidata.
Que não negocia salário.
Que aceita menos antes mesmo de tentar mais.
Não por falta de capacidade, mas porque aprendeu que desejar era arriscado demais.
As uvas verdes da vida adulta
Talvez por isso a fábula das uvas verdes siga tão atual.
A raposa não alcança as uvas e conclui: “Estão verdes mesmo. Nem queria.”
A escassez faz isso com a gente.
Quando não alcançamos algo, ou aprendemos cedo que não alcançaríamos, desqualificamos o desejo.
Transformamos frustração em discurso.
Limite em escolha.
Não é que não queremos.
É que queremos sem correr o risco de admitir.
Escassez emocional também tem gênero
Para muitas mulheres, a escassez vira renúncia treinada.
Aprendem a não pedir, não ocupar, não exigir.
Reduzem desejo para não parecerem difíceis, intensas, ingratas.
Resultado?
Mulheres que sustentam tudo, mas quase nunca são sustentadas.
Fortes, competentes, sensíveis… e cansadas.
Para muitos homens, a escassez vira autossuficiência compulsória.
Não depender, não demonstrar, não precisar.
Desejo vira fraqueza.
Vínculo vira risco.
Resultado? Homens funcionais, produtivos… e emocionalmente desertificados.
Ambos sobrevivem. Poucos se permitem desejar inteiro.
Quando o humor entrega a ferida
Talvez por isso frases como: “não crie expectativas, crie ovelhas”, façam tanto sucesso.
Rimos porque reconhecemos. É a tentativa coletiva de trocar desejo por algo que dê retorno garantido.
Se o afeto falha, produza.
Se o vínculo frustra, renda.
Se sentir dói, ocupe.
Funciona. Até a vida ficar pequena demais para quem ainda sente.
O preço do desejo encolhido
O trauma da escassez não produz pessoas frias.
Produz pessoas contidas.
Gente que vive no modo economia emocional.
Que ama com reserva.
Que sonha com moderação.
Que se protege tanto que quase não se encontra.
E o mais perverso: ensinamos isso como virtude.
Chamamos de maturidade o que começou como adaptação.
Chamamos de força o que nasceu como defesa.
Talvez crescer não seja querer menos.
Talvez seja sustentar o desejo mesmo num mundo que nem sempre dá conta dele.
Porque o problema nunca foi sentir demais.
Foi aprender a diminuir o desejo, e chamar isso de sabedoria.
(*) Psicóloga, escritora e rebelde afetuosa do mundo corporativo — onde transforma silêncio em escuta e vulnerabilidade em potência. Com 25 anos de RH na bagagem, é CEO da Prisma Consultoria, e cria espaços onde até a meta sorri e o KPI pede um café.
