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A pandemia nos acelera rumo a mundo ainda mais ‘digital’

em Tecnologia
terça-feira, 18 de agosto de 2020

Diáspora. Sem demasiado exagero pode ser o termo que melhor representa os dias de hoje

Heloisa Menezes (*) e Humberto Pereira (**)

Dispersão, separação, afastamento e segregação estão, nos mais variados matizes, presentes nas medidas possíveis de combate à pandemia que nos remetem a reflexões impreteríveis. Diante de um novo arranjo mundial e social que inexoravelmente se desenha, quais caminhos trilhar e recursos utilizar para reduzir os danos ao tecido social, retrocessos no sistema geopolítico e econômico que venham nos privar de algumas conquistas do último século? Enquanto atribuir à pandemia responsabilidade única para este desenho seria por demais insensato, negar seu poder em acelerar e justificar tendências e ideologias e em perturbar o delicado equilíbrio global, ingênuo. Mais do que nunca, é vital manter o norte e avançar no rumo da prosperidade e do bem estar social, evitando que pessoas, empresas válidas e nações não encontrem o caminho da retomada.

Neste artigo abordamos um recurso tecnológico enormemente acelerado pela pandemia que, se bem explorado, será uma das respostas ao novo normal. O digital que compreende uma combinação de tecnologias que nos tornam capazes de gerar, transmitir, armazenar e processar dados em grandeza exponencial e em fração de tempo cada vez mais próxima do imediato. Aliás, já é resposta ao próprio enfrentamento da pandemia, cujos efeitos seriam impensáveis, não houvesse tudo aquilo que este recurso já possibilitou.

Qual o real alcance e impacto da explosão digital na sociedade e nas organizações brasileiras? Onde estão as oportunidades de crescimento e desenvolvimento em um futuro muito próximo de dinamismo digital? O que podemos esperar do dilema global versus nacional? Como tratar temas como abismo digital, econômico, social?

Alterações no nível e na qualidade das trocas entre países é uma das tendências que será acelerada pela crise atual. Se já víamos, a partir do início dos anos 2000, a redução do fluxo de bens vis-à-vis e o aumento do fluxo de dados, a pandemia se tornou um ponto de inflexão para uma globalização mais digitalizada.

Trata-se de conectar cada vez menos átomos e mais bits, trocar menos bens e mais dados e informações. Entre 1998 e 2013, 3,97% da contribuição para o PIB mundial vinha do comércio de bens, enquanto 3,20% tinha por base o fluxo de dados, 2,24% o fluxo de pessoas e 1,52% vinha de investimentos estrangeiros. Cresce, a cada ano, a importância do fluxo de dados sobre a troca de bens. O volume de comunicação de dados entre fronteiras deverá continuar aumentando aceleradamente à medida que se elevam os fluxos de serviços digitais e a colaboração internacional em pesquisa open source, bem como o tráfego interno das empresas.

Afinal, são os fluxos de dados que estão moldando o movimento de bens, serviços, finanças e pessoas. O acesso à internet passará a ser ainda mais uma característica intrínseca da população, em um cenário global de conexão e mobilidade, sobretudo no consumo. O segmento de consumidores terá quase três quartos de participação no total de dispositivos e conexões até 2023, o que representará 74% do volume total global. Já o segmento de negócios seguirá com os 26% restantes.

Isso acontecerá em um momento de novas configurações de trocas e de novos pesos relativos entre os diversos atores mundiais, sejam eles empresas ou países. É o momento de países emergentes se colocarem adequadamente neste contexto, com destaque para a China e a Índia.

Basta dizer que, em 2024, as economias emergentes deverão responder por 44% do PIB global, reduzindo a distância em relação ao conjunto das economias avançadas. Tendo a internet como o principal propulsor para uma globalização mais digital e uniforme, vale citar que a América Latina, por exemplo, terá quase 470 milhões de usuários – cerca de 70% da sua população -, em 2023. Somadas a estas previsões, há estimativas realizadas no período pré-pandemia, de que, em 2030, a China terá ultrapassado os Estados Unidos como primeira economia mundial. Sinais mais claros indicam que, já em 2024, as duas economias apresentarão um PIB global bem próximos. Esse movimento em favor de mais riqueza oriunda dos emergentes pode ter relação direta com o avanço da economia digital nos dois países asiáticos, na reação dos demais países emergentes e dos avançados. Estudo da Oxford Economics e da Huawei, de 2017, estimou que a economia digital cresce 2,7 vezes mais que a economia tradicional.

A estratégia “Internet Plus”, da China, mostra o papel que o governo projeta para uma economia online e o seu papel no desenvolvimento do país. O objetivo é claro: o governo quer digitalizar toda a economia e aumentar a presença da China no mundo, não necessariamente baseada em produtos made in China. O domínio da tecnologia 5G é o retrato da corrida pela hegemonia mundial.

Na nova globalização, de base digital, a estratégia de centralização da produção na China dá lugar a uma mudança na cadeia de valor, acelerada pela digitalização e desintermediação, que permite a produção em qualquer lugar do mundo, com produtividade proporcionada pela cloud computing global e pelas mudanças na estrutura dos produtos, tanto em hardware como em software e serviços digitais.

O novo mapa dos negócios mudará do eixo local-4-global (da produção na China e em outros países asiáticos para consumo global) para local-4-local (da produção local para consumo local). A busca por respostas mais rápidas e por autonomia no supply chain deverá orientar as estratégias das empresas multinacionais, que tenderão a descentralizar a produção e as decisões.

Menor coordenação global deve ser uma das marcas das próximas décadas, devendo atingir não só organismos internacionais e países, mas também empresas transnacionais. Assim, às estratégias de empresas multinacionais de descentralização produtiva somar-se-á o protecionismo governamental e o recrudescimento do nacionalismo, inclusive erguendo barreiras não tarifárias ao livre comércio internacional.

Nesse novo contexto, como cada país se posicionará? E como o Brasil está se preparando? A inovação e a competitividade das empresas brasileiras dependerão cada vez mais do livre fluxo de dados e do desenho de um processo que tenha por base a complexa arquitetura global. Na verdade, para que o mundo digital assuma o comando do desenvolvimento em países emergentes, governos deverão criar programas sólidos de apoio à infraestrutura, de desenvolvimento de habilidades e um conjunto de políticas para enfrentar o impacto sobre a estrutura do mercado e os próprios projetos de inovação.

A grande colaboração global entre cientistas, que se observa no momento de combate à pandemia da COVID-19, deverá permanecer, mas poderá se deparar com tema de muita sensibilidade: a privacidade dos dados. Essas tecnologias têm uma característica fundamental para empresas e países: a capacidade de democratização do acesso.

Porém, enquanto novas tecnologias – em especial as de informação e comunicação – transformam o mundo, a desigualdade registrada no mercado de trabalho, no mundo empresarial e entre nações se expande com a mesma agilidade. Resta saber, então, como captar as oportunidades de democratização no Brasil, contribuindo para o combate ao abismo digital entre empresas e pessoas.

Se as novas cadeias de valor são baseadas nos fluxos de informações, produzir e acessar livremente as informações nos permitirá gerar novos negócios e acessar novas cadeias de valor. Trabalho e riqueza serão criados a partir de conhecimento dos mercados, por meio da análise de dados. O combate ao abismo digital deve fazer parte, portanto, da estratégia dos países, por meio da organização de novas formas de produção da riqueza, mais justas e dinâmicas. A diáspora que dissemina é a diáspora que pode afastar. Estamos diante de muitas escolhas, mas cabe a cada um de nós buscar o caminho da união.

(*) É assessora de Relações Institucionais da ANPEI pela Flow Consultoria (**) É Ex-Presidente da ANPEI e Vice-Presidente da Embraer