Alessandro Saade (*)
Fomos impactados com mais uma denúncia de trabalho escravo em ação dos Auditores Fiscais do Trabalho. Desta vez não foi uma olaria no interior do nordeste ou uma confecção no interior de São Paulo.
Foram duas das maiores produtoras de bebidas do país, e mais uma grande cooperativa do segmento vitivinículo. Salton, Aurora e Garibaldi passam a integrar uma longa lista de grandes empresas, que na busca por economia e eficiência, abrem mão do processo produtivo e, sem poder, abrem mão do controle da sua cadeia produtiva.
Parto sempre da presunção de inocência, mas sem de forma alguma, isentar da responsabilidade. Juridicamente, se culposo ou doloso, ambos são responsáveis, em maior ou menor medida.
Entretanto, como executivo e gestor, entendo ser muito difícil o gestor de uma empresa não saber do que acontece ao contratar empresas terceirizadas para cuidarem de uma das fases mais importantes do seu negócio: a colheita da uva.
Mais ainda no caso da Salton. Seu recorde de faturamento no ano passado, 500 milhões de reais e a arrojada meta de faturar 1 bilhão de reais em 2030 não condizem com práticas como as descobertas na semana passada, com trabalho análogo à escravidão praticado por uma empresa terceirizada.
A sociedade saiu em resposta ao fato, exigindo explicações e agindo de forma preventiva. Entre outras ações, por exemplo, Salton, Aurora e Garibaldi foram suspensas da APEXBrasil, órgão governamental que cuida das promoções às exportações brasileiras, perdendo todo e qualquer suporte às atividades de promoção, vendas e exportação de seus produtos.
Infelizmente isso é bem mais recorrente do que deveria e do que acompanhamos. O mundo tem hoje cerca de 27 milhões de escravos, sendo mais da metade deles, 18 milhões, composto por crianças! O dado é de um levantamento da Slavery Footprint, entidade que monitora o tema globalmente.
Fiz um breve levantamento dos últimos 15 anos, de grandes marcas globais envolvidas neste tipo de escândalo, sempre com a característica de estar terceirizando sua produção para um país ou região onde a mão de obra é mais barata, na busca de mais economia, mais lucro ou ambos.
A Apple em 2012 teve sua terceirizada chinesa Foxconn denunciada em matéria do jornal The New York Times pelo abusos contra seus empregados, desrespeito às regras de segurança, contratação de menores de idade e, absurdamente, até a morte de alguns funcionários.
No mesmo ano, a Coca-Cola teve uma denúncia contra seu fornecedor de laranjas, para a produção da Fanta que, na Itália, trabalhava com mão de obra escrava de imigrantes africanos. A empresa norte-americana imediatamente rescindiu o contrato com a empresa e não tocou mais no assunto.
O ícone esportivo Nike, acabou se tornando sinônimo de trabalho infantil no mundo, quando em 1996 uma criança paquistanesa de 12 anos estampou a capa da revisa Time, costurando uma bola. Desde então a marca vem buscando dar mais transparência e governança aos seus processos produtivos, mas ainda recebe denúncias sobre a continuidade dos abusos contra os trabalhadores das fábricas terceirizadas.
A Hershey’s também passou por isso na compra do cacau, adquirido em grande volume da África Ocidental, região onde se situa a Costa do Marfim, recorrentemente denunciada pela Unicef e a Internacional Labor Rights Forum, por explorar o trabalho infantil.
Até a Victoria’s Secret, em 2011 teve seu fornecedor de algodão, também da África Ocidental, denunciado por uso de mão de obra infantil, explorando crianças e impedindo que continuassem seus estudos. A Bloomberg News em 2011 trouxe à tona uma investigação de quase dois meses, com depoimentos de jovens que sofreram este abuso. A empresa nada fez sobre o assunto, limitando-se a parar de usar o selo de ‘comércio justo’ nas etiquetas dos seus produtos.”
A marca Zara é reincidente. No Brasil temos registro em 2011 na cidade de Americana, com trabalho escravo nas confecções terceirizadas no interior do estado de São Paulo.
O conceito / modelo de negócio fast fashion, aliado a cadeias produtivas longas e terceirizadas dificultam o controle, mas de forma alguma isenta as empresas detentoras das marcas, da responsabilidade de gerenciar toda a cadeira e garantir sua transparência e governança.
Existem vários estudos sobre o tema, mas destaquei um do Núcleo do Conhecimento, que trata sobre o TRABALHO ANÁLOGO AO ESCRAVO NA INDÚSTRIA TÊXTIL BRASILEIRA.
Até as marcas de luxo entram no bolo. Na busca pela milenar habilidade de bordar dos indianos, marcas como Dior, Saint Laurent e Gucci foram denunciadas em 2020 numa matéria da revista Time, mostrando a cadeia de bordados e seus abusos contra os trabalhadores.
No Brasil o volume tem crescido. Em 2021 foram resgatados quase 2.000 pessoas em 23 estados do país. Uma rápida busca no site do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho mostra uma média de 20 matérias por mês sobre o tema, incluindo clipping, prestação de contas sobre notificações, multas, resgates e relatórios.
Podemos usar a teoria que o mercado ainda traz valores escravistas, que entende que exploração da mão de obra é algo normal.
Ou que a busca pela economia na produção, permite levar as fábricas para outras localidades com salários e impostos mais baixos, e uma regulamentação e fiscalização mais frouxas.
Ou ainda que a pressão do mercado por preços mais baixos como premissa ao aumento do consumo leva as empresas a ações mais agressivas e menos éticas.
Sem uma governança clara e ativa, fica difícil impedir os abusos sobre a pessoa, sobre o social. Os valores das empresas e dos seus fundadores permeiam os negócios e suas relações. Para o bem e para o mal. Tanto nas grandes como nas pequenas empresas, do lado corporativo estamos bem longe do caminho das pautas ESG.
Do outro lado, mesmo que você esteja indignado, sinto informar que em algum momento você consumiu, mesmo sem saber, algum produto ou serviço que tenha usado uma relação desequilibrada na relação capital / trabalho.
A questão é bem complexa e multifacetada. Muitas variáveis e interesses, pessoais e corporativos. Precisamos de uma mudança de mentalidade e de atitude para de fato interrompermos este ciclo.
Encontrei um artigo muito bom no Nexo Jornal contextualizando a exploração do trabalho e a constituição da nossa sociedade. Eles conversaram com a cientista política Natália Suzuki, coordenadora do programa “Escravo, nem Pensar!” da organização Repórter Brasil. Vale muito a leitura.
Continuar indignado sempre que se deparar com fatos como este é uma forma. Mudar seus conceitos e padrões como consumidor, empreendedor e executivo é outra. E bem mais eficaz.
Não é nada fácil, mas é necessário dar o primeiro passo. E rápido.
#empreendorismo #trabalho #esg #trabalhoescravo #consumo #cadeiasprodutivas #falasaade
(*) É Fundador dos Empreendedores Compulsivos, é também executivo, autor, professor, palestrante e mentor. Possui mais de 30 anos de experiência atuando com grandes empresas e startups brasileiras, tornando-se referência no universo do empreendedorismo no Brasil. Formado em Administração pela UVV-ES, com MBA em Marketing pela ESPM e mestrado em Comunicação e Mercados pela Cásper Líbero, especializou-se em Empreendedorismo pela Babson College e em Inovação por Berkeley. Atualmente é Superintendente Executivo do ESPRO, instituição sem fins lucrativos que há 40 anos oferece aos jovens brasileiros a formação para inserção no Mundo do Trabalho.