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Um mitômano nos primórdios do cinema brasileiro

em Especial
terça-feira, 30 de agosto de 2016
Fotos: Divulgação/Antoninho Perri

Um mitômano nos primórdios do cinema brasileiro

Pesquisa revela a trajetória de Eugênio Maria Piglione Rossiglione de Farnet, cujo nome artístico era E.C. Kerrigan, estelionatário realizador de filmes mudos

Fotos: Divulgação/Antoninho Perri

Ficha policial e matérias com a reprodução da foto do “falso conde” em jornais paulistanos: golpes em série.

Carmo Gallo Netto/Jornal da Unicamp

A cidade de São Paulo chegava à década de 1920 passando por diversas modificações urbanas e mudanças no modo de vida das elites. Tinha um teatro municipal, viadutos uniam partes da cidade antes separadas por vales, várzeas eram dominadas, casarões construídos pelos barões do café ocupavam aquela que veria a ser a Avenida Paulista. Desenvolvia-se uma cidade cosmopolita, de pretensões europeias que já se espelhava em cidades americanas, com uma população de aproximadamente 580 mil habitantes, com grande contingente de imigrantes italianos, mas também de portugueses, espanhóis, alemães e franceses. No decorrer e depois da Primeira Grande Guerra começara a se desenvolver o parque industrial paulistano e em consequência cresciam e adensavam-se na cidade os bairros operários, marginalizados pela elite paulistana. Era uma São Paulo que se desenvolvia economicamente e ansiava por progresso e modernidade, impulsionada pelos valores burgueses.

É a esta cidade, marcada pela cultura europeia, influenciada pelos valores propagados através do cinema silencioso proveniente dos EUA e fascinada pelo fantasioso, que chega, em meados de 1921, Eugênio Maria Piglione Rossiglione de Farnet, dizendo-se proveniente de Gênova. Apresenta-se como nobre, cujas proezas ao redor do mundo são registradas pela imprensa paulista como fait divers, proveniente de um hipotético diário pessoal, próximo do folhetim rocambolesco. A partir de 1923, ao se mudar para Campinas, interior de São Paulo, Eugênio abandona o sobrenome Pignone e se denomina E. C. Kerrigan, pretenso diretor ítalo-americano com experiências nos estúdios da Vitagraph e da Paramount.

Dizia-se filho de um conde e de uma multimilionária americana. Mitômano, sempre elegantemente trajado, utilizava a lábia e o charme para exercer sua tendência mórbida para a mentira com o fim de atingir seus objetivos, aproveitando-se do clima provinciano da cidade.

Kerrigan (centro, de branco) dirige cena de "Amor que redime", produção de 1928.É recebido e hospedado por uma família de um mecânico italiano e em pouco tempo os engabela com suas histórias mirabolantes, surrupiando-lhes as economias acumuladas em anos de trabalho. Naturalmente tudo seria devolvido em poucos meses quando seus pais viriam morar em um palácio em São Paulo. O que naturalmente nunca aconteceu.

Casa-se com uma das moças da família paulistana que o acolhera e, logo depois, o sogro, desconfiado, vai a Gênova para verificar a veracidade das histórias que tanto fascinara a família. Descobre que eram todas mentirosas e que seu genro não passava de um estelionatário internacional. Telegrafa à família relatando a descoberta. Desesperada, uma das cunhadas lhe dá um tiro. Pignone vai para as páginas policiais, inicialmente como vítima, mas logo as investigações mostram que ele usara todos os recursos imaginários para ludibriar a família.

Mesmo assim, logo depois consegue espaço no Fanfulla, jornal da colônia italiana, para contar histórias de sua vida fantasiosa e ganha espaço nos noticiários de O Estado de S. Paulo e do Correio Paulistano pela peculiaridade dos entrechos. Na verdade estabelece-se um pacto em que a imprensa abdica da veracidade para ter alimentados seus desejos por histórias fabulosas, fantásticas, que ele é capaz de oferecer. A propósito, ao publicar suas narrativas na forma de folhetim, o Fanfulla, que só perdia em tiragem para o conceituado órgão paulista, esclarece que não se responsabiliza pela veracidade dos fatos, mas o faz atendendo ao interesse público.

Kerrigan em cena de "Corações em suplício"; produtora de Guaranésia, Minas Gerais, foi à falência depois do filme.Nesse folhetim, Pignone narra duas de suas aventuras. Na Itália ele teria conquistado uma filha de japoneses e o pai, supondo-a desonrada, quer que ele cometa haraquiri. Ele conta então como escapou dessa aventura, refugiando-se em Paris. Lá teria se dedicado a explorar a vida noturna da cidade, os bordeis e a ação de criminosos violentos, os apaches, como eram denominados. Ao sofrer uma tentativa de assalto, descobre a existência de um bando de criminosos e resolve desarticulá-lo.

O espírito que revela nessas narrativas aventureiras, fantasiosas ou não, permeiam toda a vida de Pignone e suas posteriores pretensões cinematográficas, conforme ele já revelara na época a outro jornal italiano de São Paulo, o humorístico Il Pasquino Coloniale.

No cinema
Kerrigan se envolve em um movimento que, incentivado por revistas como Selecta, Para Todos e Cinearte, começava a tomar força e levaria, na medida do possível, ao projeto por elas vislumbrado: a criação de grandes estúdios cinematográficos, a exemplo de Hollywood, e a produção de filmes de ficção com personagens de um país idealizado e progressista.

Nesse contexto, ele alimenta o desejo de uma cinematografia em formação, fomentada por essas revistas, adquirindo de pronto certa respeitabilidade e admiração ao se fazer passar por diretor que trabalhara em estúdios americanos. Alguém com experiência no tão admirado cinema hollywoodiano e com modos refinados, característica que lhe é recorrentemente conferida, desperta o interesse de críticos que desejavam ver no país o desenvolvimento da indústria de filmes.

Com sua capacidade insinuante, Kerrigan agita a produção de ficções, se relaciona com diversos personagens que se destacam na atividade crítica, no poder financeiro, no trabalho cinematográfico e mantém forte sintonia com diversos produtores ainda ativos durante os anos 1920, mesmo em um meio dominado pelas produções estrangeiras.

Ingrid Hannah Salame da Silva, autora da pesquisa: dissertação contribui para a compreensão do desenvolvimento das primeiras atividades cinematográficas no país.Esse personagem mítico e contraditório tem interessado dispersamente pesquisadores desde o final da década de 1960. Em 1974, a revista Cinearte menciona um aventureiro, que se dizia chamar E. C. Kerrigan, que se constituíra figura de relevo pelo menos nas cidades de Campinas, Guaranésia, São Paulo e Porto Alegre. Ele também é citado em outras obras que abordam o cinema nacional, caso da História do Cinema Brasileiro, coletânea publicada em 1999.

Trabalho desenvolvido pela jornalista Ingrind Hannah Salame da Silva junto ao Instituto de Artes (IA) da Unicamp, orientado pela professora Miriam Viviana Gárate, reúne informações coletadas por esses estudiosos do cinema nacional e avança, sobretudo no período que antecede a incursão do italiano no meio cinematográfico brasileiro, o que permite esclarecer a postura desse personagem como diretor e roteirista e caracterizar o conteúdo dos filmes que realizaria. O estudo, que mostra a trajetória de Pignone, abundante em peripécias, revela invenções fantasiosas, rumores, denúncias policiais, versões e contraversões, trazendo à tona um mitômano compulsivo.

Seus relatos descrevem proezas ao redor do mundo, semelhantes aos famosos heróis folhetinescos do século 19. Identificado como embusteiro sem posses ou antecedentes aristocráticos, ocupa o noticiário policial de jornais paulistanos. Em posterior entrevista ao Fanfulla, declara que seus relatos inverossímeis destinavam-se à elaboração de filmes, revelando suas ambições cinematográficas.

A dissertação busca resgatar a trajetória cinematográfica de E. C. Kerrigan. Mostra que, para realizar filmes de ficção, ele recorre a duas estratégias, comumente utilizadas no período do silencioso brasileiro: ou criando escolas de cinema, que possibilitavam a reunião de técnicos, artistas e produtores, ou realizando documentários com evocações elogiosas a instâncias do poder. Nos dois casos, utilizava um recurso recorrente: a imagem da persona do diretor com experiência em Hollywood, farsa convenientemente aceita ou rejeitada pelo público, pela imprensa e pelos críticos conforme sua produção oferecesse ou não características do cinema estrangeiro. Sua carreira, como a de tantos outros cineastas, não resiste ao advento do cinema falado no Brasil, em 1929, que encarece e torna mais complexa a produção, distribuição e exibição de filmes.