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Primeira senadora foi recebida com flor e poesia

em Especial
sexta-feira, 10 de maio de 2019
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Primeira senadora foi recebida com flor e poesia

Ao longo de um século e meio, apenas políticos homens entraram no Senado. Isso mudou há 40 anos, quando a primeira senadora tomou posse. A mulher que rompeu com a exclusividade masculina na Câmara Alta foi Eunice Michiles, uma ex-professora de grupo escolar e ex-deputada estadual do Amazonas

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Eunice Michiles ganhou flores dos colegas no dia em que tomou posse no Senado. Fotos: Arquivo pessoal

Ricardo Westin/Ag. Senado/Arquivo S

A posse histórica ocorreu em 31 de maio de 1979. Documentos guardados no Arquivo do Senado mostram que os parlamentares receberam a colega do sexo feminino com deferência e empolgação. A novata foi presenteada com flor, chocolate e poesia.

O senador Dirceu Cardoso (MDB-ES) discursou:

— Foi por causa das mulheres guerreiras que galopavam nos seus árdegos cavalos que se deu ao rio o nome de Amazonas. Tinha, portanto, que ser da Amazônia a nossa primeira senadora, essa mulher que, como a estrela nova, desce neste Plenário e asperge luz sobre todos nós. Saúdo Vossa Excelência como representante da mulher brasileira, como representante da minha esposa e das minhas filhas.

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Cartaz de 1978 apresenta candidatos arenistas do Amazonas, incluindo Eunice. Foto: Biblioteca Nacional

O senador Lomanto Júnior (Arena-BA) disse o que esperava da colega:

— Que Vossa Excelência possa aqui emprestar, com sua inteligência, sua sensibilidade, seu coração e sua beleza, a colaboração de que o Senado tanto necessita. A sua presença aqui é, para nós, motivo de enternecimento.

O senador Almir Pinto (Arena-CE) recitou um poema de sua própria lavra em que lembrou que a Câmara já tinha três mulheres:

— O Senado sesquicentão [que tinha 150 anos] / agora está como quer. / A exemplo da outra Casa, / tem na Casa uma mulher.

Nesse dia, um cesto com rosas vermelhas chegou às mãos da senadora. O mimo foi providenciado pelo senador Paulo Brossard (RS), em nome da bancada do MDB, o partido oposicionista. Eunice pertencia à Arena, a sigla de sustentação da ditadura.

Eunice tomou posse fora de época. Nas eleições de 1978, as urnas haviam dado a vaga do Amazonas a João Bosco (Arena). Ele assumiu em fevereiro de 1979, com os outros novos senadores, mas mal chegou a atuar. Três meses depois, sofreu um AVC e morreu. Como Eunice havia ficado em segundo lugar, a vaga foi para ela.

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Eunice Michiles fala em evento no Senado: projetos a favor das mulheres. Foto: Arquivo Senado Federal

Quebra de tabu
No discurso inaugural, a nova senadora se apresentou como uma “mulher simples, misto de dona de casa e política”, e disse qual seria o norte de sua atuação parlamentar:

— Como primeira senadora, sinto os olhares de milhões de mulheres na expectativa de que eu lhes saiba interpretar as reivindicações. O Código Civil nos coloca ao nível do índio, da criança e do débil mental. Somos fruto de uma cultura patriarcal e machista, onde a mulher vive à sombra do homem e rende obediência ao pai, ao marido ou, na falta deste, ao filho mais velho. Em 1979, temos muito a melhorar.

Eunice, de fato, seguiu essa linha. Um de seus primeiros projetos de lei eliminava do Código Civil de 1916 o artigo que permitia ao homem anular o casamento e devolver a mulher aos pais caso descobrisse que ela não era virgem. A senadora, que tinha 50 anos, argumentou:

— Vejam como era difícil a situação das moças do meu tempo. Éramos incentivadas a ser bonitas e provocantes, mas ai de nós se cedêssemos aos impulsos e fôssemos “desonradas”. A virgindade era a marca maior de nossa conotação de objeto. Exige-se que um objeto, ao ser adquirido, seja zero quilômetro. Com o homem, era diferente. Quanto mais rodado, melhor. O tempo se encarregou de mudar conceitos e atitudes. A geração jovem não atribui à virgindade feminina o mesmo valor da geração passada. Assim, o dispositivo de nosso Código Civil é uma distorção entre o social e o jurídico e por isso precisa ser reformulado.

Outro dos projetos de Eunice permitia que a mulher com filhos fizesse uma jornada de trabalho mais curta, com redução proporcional no salário. Ela também apresentou uma proposta que acabava com a possibilidade de o homem casado em comunhão de bens contratar empréstimos e dar o patrimônio da família como garantia, sem o consentimento da mulher.

A ideia de aproximar a mulher do homem no quesito direitos foi mal recebida pelos políticos. Nos oito anos de mandato, Eunice não conseguiu aprovar nenhum projeto. Enquanto alguns foram rejeitados logo de cara, outros foram ignorados e nem entraram na pauta de votação.

A pauta feminina naufragou, mas não porque Eunice fosse inepta para a política.

Pelo contrário. Ela tinha excelente trânsito no Palácio do Planalto. Em 1982, fez parte do grupo que convenceu o presidente João Figueiredo a nomear a primeira ministra do Brasil — a advogada Esther de Figueiredo Ferraz, que chefiou o Ministério da Educação. Em 1983, quando Figueiredo se submeteu a uma cirurgia cardíaca nos Estados Unidos, a senadora foi uma das poucas autoridades que tiveram permissão para visitá-lo no hospital.

Pele bronzeada
Talvez o fracasso dos projetos de Eunice se explique pela mentalidade assumidamente machista de 40 anos atrás. No exercício do mandato, a primeira senadora do Brasil foi alvo de hostilidades e até de assédio moral. Numa palestra que proferiu numa entidade de empresários, ela foi interrompida pelo presidente da instituição, que a acusou de tratar apenas de “assuntos secundários”, como planejamento familiar, e afirmou que a mulher só estaria “em condições de igualdade com o homem” quando discutisse “temas como energia nuclear”.

Em outra ocasião, um senador governista repreendeu Eunice em tom ríspido diante de todo o Plenário. Ele estava irritado porque ela e outros dois parlamentares não haviam chegado a tempo para uma votação e, sem o voto deles, o governo não conseguiu aprovar um projeto importante. Embora os atrasados tivessem sido três, o senador só descontou a raiva na colega mulher.

A imprensa também não tratava a senadora mulher da mesma forma que tratava os homens. A primeira grande entrevista que Eunice concedeu após saber que iria para o Senado foi ao Jornal do Brasil. O texto informou que ela era “bonita”, tinha “os olhos azuis contrastando com a tonalidade bronzeada da pele” e estava “discretamente vestida com um conjunto de malha em tons de bege e marrom”. A entrevista não saiu nas páginas de política, mas no caderno de variedades.

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A senadora Eunice Michiles conversa com o presidente João Figueiredo: proximidade com o Palácio do Planalto. Foto: Arquivo Pessoal

A revista Manchete publicou fotos em que a senadora aparecia comprando feijão no supermercado, picando cebola na cozinha, aguando flores no jardim e até fazendo ginástica na sala de casa, trajando collant e polaina.

Em 1986, Eunice Michiles abriu mão de disputar a reeleição no Senado e candidatou-se a deputada federal. Eleita pelo PFL, participou da Assembleia Nacional Constituinte e, agora respaldada por uma bancada feminina, finalmente conseguiu ajudar a aprovar inúmeros direitos para as mulheres. Em 1999, ela se retirou da vida pública. Hoje com 89 anos, Eunice vive em Brasília.

A segunda senadora do Brasil foi Laélia de Alcântara (PMDB-AC), que tomou posse em 1981. A atual bancada feminina do Senado tem 13 parlamentares.