Valdemir Pires (*)
A presença de milhões de pessoas nas ruas, manifestando insatisfação e/ou reivindicando mudanças é um fenômeno sociopolítico de grande importância e interesse.
Não acontece com frequência, e quando ocorre é sinal da proximidade de rupturas: as pessoas não saem aos milhões às ruas por pouca coisa, porque pouca coisa já é a vida de cada um, e se vai levando sem grandes sobressaltos ou expectativas. É quando a pouca coisa de cada um sofre ameaça que seus respectivos proprietários se movem porteira afora. Então, diante desse tipo de mobilização de massas, é sempre necessário inquirir sobre os fatos e acontecimentos que estão gerando incômodos individuais em escala, aglutinando marchas e passeata gigantes.
No dia 13 de março de 2016 e no mês de junho de 2013, o Brasil foi palco de imensas mobilizações de rua, que têm como imediatamente anteriores a que se deu pelo impeachment do presidente Collor (1992) e a luta pelas Diretas-já (1984-1985). De fato, a relação Estado-sociedade no país anda agitada! O que não é nada mal se isso, ao invés de gerar instabilidade institucional, provoca aprofundamento democrático.
Está fora de dúvida (a História já permite afirmar) que a luta pelas Diretas-já e o movimento dos “Cara-pintadas” foram pedras importantes da democracia brasileira contemporânea, uma tendo acontecido imediatamente antes e outro imediatamente depois da Constituição de 1988, sintomaticamente. Quanto às manifestações mais recentes, o impacto sobre as instituições democráticas e o Estado de Direito é ainda uma incógnita. Não só porque muito recentes, ainda produzindo suas ondas, mas sobretudo porque são sumamente diferentes das duas anteriores em vários aspectos fundamentais.
A mais emblemática diferença entre os movimentos de 1984-85/92 e os de 2013/16 está na postura dos manifestantes em relação ao papel que atribuem aos partidos e detentores de cargos eletivos. As Diretas-já foram furto de um arco de alianças entre partidos e políticos, com intensa interação com as organizações da sociedade civil.
Em 1992 isso não aconteceu tão intensamente, mas em nenhum momento se negou a importância dos partidos e agentes políticos formais na condução dos assuntos coletivos.
A partir de 2013, o repúdio aos indivíduos e instituições formalmente encarregados, via votos/mandatos, de decidir e agir em nome da coletividade, estreou com força, chegando a ocorrer a expulsão e até maus-tratos a políticos e militantes partidários, mormente do Partido dos Trabalhadores (PT). No dia 13 de março próximo-passado essa vertente se acentuou, e embora tenha sido mais virulenta contra o PT, atingiu, aqui e ali, outros partidários e expoentes de outras agremiações.
Outra diferença notável entre as vozes das ruas do final do século XX e inícios do século XXI, no Brasil, se refere aos motes e ao tom com que são sustentados: eram palavras-de-ordem em 1984-85/92 e beirou ao xingamento (quando não o foi, e muito mal-educadamente) em 2013/16. A intolerância ganhou as ruas, amparada pela mídia e em parte coordenada por meio de redes sociais. A esta altura, há que se fazer menção, também, a pelo menos uma diferença expressiva entre os atos de 2013 e 2016. No primeiro momento, a violência física se fez muito presente, chegando a depredações de grande monta. No segundo, isso não aconteceu. Isso, claro, é sinal de que os atores são outros, além de ter sido diferenciado o tratamento dado pelas forças policiais.
Em 2013 tudo começou por “vinte centavos” (aumento do preço do transporte coletivo). Em 2016, toda a ira (e foi disso que se tratou, como testemunham falas nas mídias e cartazes) se dirigiu contra o PT e seu governo, embora o chamamento fosse contra a corrupção. Nota-se uma despolitização em relação à 1980/90: o Judiciário ocupa o espaço de esperança dos manifestantes (muitos saudosos da ditadura militar, explicitamente), trazendo ao centro do palco personagens como Barboza e Moro (que há que se ver como a História irá lembrar).
Sabe-se pouco sobre os movimentos recentes – forma de organizar e mobilizar, capacidade de fazer propostas, condições de sustentação etc. – mas uma coisa vai ficando evidente: se voltam contra as transformações sociais capitaneadas pelos governos petistas e à ideologia um pouco progressista do PT (bem pouco, diga-se de passagem), muito mais do que contra a corrupção, que, aliás, justificou ataques a Getúlio, Juscelino e Jango e, por outro lado, levou à eleição de um “Caçador de Marajás” na década de 1990.
(*) – É professor de Adminitração Pública da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara.