A curiosa passagem de um cronista inglês pelo Brasil de 1927
Visitando um sebo encontrei em um canto, quase esquecida e em oferta ao custo de R$ 20,00 a obra “Cenas Brasileiras” do inglês Rudyard Kipling que conheceu o Brasil em 1927 e fez para o jornal londrino Morning Post uma série de crônicas sobre nosso país. Posteriormente publicada no formato de livro, a edição que encontrei é da Editora Record – 1977
Além de jornalista, Kipling era poeta em prosa e verso, considerado uma celebridade literária em sua época por obter ainda jovem o Prêmio Nobel de Literatura de 1907 e ser o primeiro escritor de língua inglesa a ganhar essa premiação. Por esses requisitos foi recebido com pompa e circunstância pela Academia Brasileira de Letras quando de sua passagem pelo Rio de Janeiro, iniciada em 13 de fevereiro de 1927, como descreve o imortal pela ABL, Raimundo Magalhães Júnior, autor do prefácio da publicação em língua portuguesa.
Lendo “Cenas Brasileiras” percebe-se a preocupação do tradutor, Pinheiro Lemos, em não fugir da redação original, porém como são sete capítulos, cada um deles aberto com um curto poema a rima se perde, mas o conteúdo não, podendo-se notar que o autor, tratado por alguns críticos como preconceituoso em razão da obra “O Fardo do Homem Branco”, considerado pelas esquerdas como ode ao imperialismo, Rudyard Kipling mostra-se neste livro sensível ao retratar lugares onde esteve, especialmente a Bahia, descrita como local do Brasil onde todas as pessoas parecem se conhecer e, “cidade-mãe onde não existe a questão da cor”. Em um dos poemas inclusos na obra pergunta a seus leitores ingleses: “Não tendes bananas, minha gente? Pois aqui nós a compramos dos quitandeiros que as trazem em seus tabuleiros, bem como as melancias e verduras…”
Nascido a 30 de dezembro de 1865, em Bombaim, para onde sua família se dirige entre os participantes da incorporação da Índia à cultura ocidental, como diziam os ingleses, aos cinco anos e meio, é levado a Londres para ser educado. Sua biografia conta que retornaria a Bombaim e lá permaneceria parte da juventude. Diz também que o pai, John Lockwood Kipling, então apaixonado por Alice Macdonald, que viria a ser sua mãe, declara a ela seu amor em um passeio às margens do lago Rudyard, sendo correspondido. Como lembrança daquele momento sublime, colocam no filho o nome do lago. Seu primeiro sucesso literário acontece em 1894 com “The Jungle Book”, traduzido no Brasil como “O Livro da Selva”, onde em um dos contos é descrita a vida do personagem Mowgli, o menino lobo, popularizado no cinema pelo desenho de Walt Disney em 1967.
A visita ao Brasil de Rudyard Kipling, começa antes do carnaval de 1927 e se estende por cinco semanas. Sua primeira passagem é por Recife em que relata, “… havia barcos atracados bordo-a-bordo, onde homens vendiam mangas rosas e douradas, periquitos verdes, … mais ao longe indícios de vilarejos em um promontório arborizado que avançava pelo mar turquesa”. Depois dos encantamentos do Nordeste, o viajante chega ao Rio de Janeiro às vésperas do reinado de Momo e se surpreende com as pessoas em Copacabana, onde carros passavam com gente fantasiada, alegre e cantante, “isso porque o carnaval é daqui a uma semana e já estão se preparando”, observa, em misto de surpresa e leve entusiasmo.
No Rio tudo é novidade para o inglês que percebe a cidade movimentada logo cedo em frente ao Copacabana Palace, “… um hotel de mármore diante das águas serenas onde um homem pilota uma motocicleta em trajes de banho…”, depois quase se emociona ao contar sobre a flor da vitória-régia, presente no Jardim Botânico carioca e ao tratar de forma poética, quase lírica, a sua saída do Rio de Janeiro por mar na direção de São Paulo, cuja chegada se dá via porto de Santos. Depois, segue para a capital paulista de carro pelo antigo Caminho do Mar e conhece a usina de Cubatão, então recém-inaugurada, após vultuoso projeto de engenharia levado adiante pela Light & Power Company, empresa canadense, um país da comunidade britânica.
O poema de abertura deste capítulo leva o título, Canção do Dínamo, em referência à força das águas que segundo ele, “descem por túneis”. Kipling não chega a explicar em sua crônica que o curso natural das águas do Rio Tietê, que atravessa o Estado na direção do interior, em parte passa a ser bombeado pela Light para o Rio Pinheiros que teve seu sentido invertido, na direção da Represa Billings, mas informa que “se usam algumas centenas de litros das águas represadas acima da usina de Cubatão para se gerar eletricidade”. O cronista, entretanto, e talvez preocupado com os riscos à natureza, pergunta ao engenheiro que o atende sobre o futuro daquele lugar e explica que não obteve resposta pois, “o homem preferia falar apenas dos míseros cavalos (quilowatts) que a usina poderá gerar”.
A entrada do visitante à capital paulista é descrita como, “um trajeto por vias de campo aberto preparado para os contornos de cinza e creme de várias imensas Madris”, e conclui: “Não é preciso que ninguém nos diga que aqui está uma metrópole”. Sua primeira passagem é no Instituto Butantã instalado, segundo ele, dentro de uma fazenda e se impressiona com a habilidade de um funcionário em lidar com serpentes, “cujo chocalho lembra o barulho de sementes secas dentro de uma fava” e informa; “quase não são alimentadas quanto mais famintas mais venenosas, essas cobras são mandadas pelos fazendeiros para em troca receberem doses do soro contra os malefícios do veneno”.
Sobre as jiboias prestou especial atenção: “Elas podem morder também, mas no Norte deste país são criadas como animais domésticos para combater os ratos e não atacam as pessoas da casa”. Neste relato interessante o escritor descreve como viu as tarântulas em cativeiro no Butantã e ressalta que são colocadas ao lado de cobras pequenas para, “ali permanecerem em convívio durante semanas para depois comê-las”. Kipling classifica essas aranhas gigantes como “criações pessoais do diabo”.
No capítulo seguinte, aí sim, o autor de “Cenas Brasileiras”, se atém aos pormenores da cidade de São Paulo de 1927, começando a descrevê-la de maneira afetuosa. “As necessidades do transporte a criaram e ela ficou como uma espécie de cômoda pousada e centro de distribuição com uma alegre história própria. Chegou então o café, que é o rei destas bandas, e São Paulo cresceu até oferecer aos fazendeiros os prazeres da ‘vida’. Depois começaram as fábricas e uma grande imigração de europeus latinos. Durante a Grande Guerra, os fornecimentos se estancaram forçando o Brasil a desenvolver a sério seus recursos então São Paulo tomou a frente e expandiu-se para o interior e não há razão por que deva parar.
As suaves ladeiras que a cercam foram feitas para o construtor que pode encontrar areia e barro para tijolos em toda parte. A localização dos bairros residenciais e fabris foi estabelecida há muito tempo, o centro comercial de São Paulo se comprime em torno de um jardim orlado de palmeiras defronte do Teatro Municipal, onde os edifícios são constantemente derrubados para que sejam reconstruídos com mais altura. Carros e caminhões movem-se por toda parte e sobre as dormentes dos trilhos de bonde, sendo o trânsito regulado por homens da polícia de cassetete e caderno na mão. Os de patente maior, montados em cavalos, são encarregados dos sinais luminosos verdes e vermelhos. Nos bairros ainda há o burro reacionário (a puxar carroças) e nos subúrbios o tranquilo carro de bois que até os caminhões respeitam…”
No interior paulista o visitante inglês conhece fazendas de café, mas não cita os nomes e nem as cidades por onde passou, contudo elogia o sabor do café brasileiro ao dizer que nunca havia realmente experimentado um produto de tamanha qualidade. “Pode-se tomar grandes xícaras, cada qual melhor que a anterior e se dormir beatamente depois”. No último capítulo denomina o Brasil como “mundo à parte” escrevendo que os brasileiros com quem falou sabem dos problemas externos, mas esses assuntos não fazem parte do seu mundo essencial. “Dizem caçoando que Deus é brasileiro, pois quando tiveram uma safra de café excepcional, Deus mandou uma geada no momento exato, para reduzir a safra em um quarto e estabilizar o mercado”. O relato das cinco semanas de viagem de Rudyard Kipling pelo Brasil, termina de forma poética como a ressaltar boas lembranças daquilo que viu e viveu. Kipling morreria nove depois, em Londres, a 18 de janeiro de 1936, com 70 anos.
O autor do prefácio da edição nacional de “Cenas Brasileiras”, Raimundo Magalhães Júnior, ressalta ao final de seu texto situações que permaneciam no cotidiano brasileiro de 1977, ou seja, 50 anos depois da visita do cronista inglês a nosso país, coisas que ainda fazem parte do cenário atual. Exemplos, o entusiasmo com a chegada do carnaval, a diversidade de frutas e o serpentário do Instituto Butantã. “Já não somos como ele considerava ‘um mundo à parte’, mas aquilo que Kipling escreveu vale muito em termos de comparação entre o que fomos e o que somos, ou o que éramos e deixamos de ser”, conclui o imortal de nossa Academia de Letras.
(*) Geraldo Nunes, jornalista e memorialista, integra a Academia Paulista de História. ([email protected]” data-mce-href=”mailto:[email protected]“>[email protected]).