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Engraxates ambulantes influenciaram no samba paulistano

em Especial
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Fotos: Pedro Bolle e Cecília Bastos

Engraxates ambulantes influenciaram no samba paulistano

Das latinhas de graxa e das escovas dos engraxates ambulantes surgia a batida peculiar de um samba característico que influenciou os destinos do ritmo na cidade de São Paulo. O som incitava aqueles jovens trabalhadores, negros em sua maioria, a dançar a “tiririca” – dança na qual dois participantes se desafiavam num jogo de pernadas

Fotos: Pedro Bolle e Cecília Bastos

Nas décadas de 1920 a 1950, eles engraxavam e faziam suas batucadas.

Antonio Carlos Quinto/Agência USP de Notícias

Estas cenas eram comuns entre as décadas de 1920 e 1950, nas áreas centrais da cidade de São Paulo. “Até que a polícia chegasse para dispersar ou mesmo deter alguns participantes”, conta o historiador social André Augusto de Oliveira Santos, autor do estudo ‘Vai graxa ou samba, senhor?’: a música dos engraxates paulistanos entre 1920 e 1950. A dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Filosofia da USP enfoca a atividade dos engraxates paulistanos e a influência que eles tiveram não apenas no samba da cidade, mas até na formação e organização de algumas escolas de samba de São Paulo.

Entre os anos de 2013 e 2015, sob orientação do professor José Geraldo Vinci de Moraes, do Departamento de História, Santos dedicou-se a estudar o tema pesquisando jornais e revistas da época e até fontes policiais, como boletins de ocorrências, relatórios e processos contra ambulantes. O que chamou a atenção do pesquisador foi que em muitos estudos sobre o samba paulistano havia apenas algumas citações sobre os engraxates e suas manifestações musicais. “Foi daí que surgiu a ideia de estudar mais profundamente a participação destes personagens na influência do gênero na capital paulista”, conta.

Em novembro de 2015, o estudo foi vencedor do “Concurso Sílvio Romero de Monografias”, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por meio do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. A pesquisa de Santos foi a vencedora entre 17 inscritos no concurso. Criado em 1959, o Concurso Sílvio Romero de Monografias foi idealizado com o propósito de estimular a produção de conhecimento científico sobre os diversos temas do folclore e da cultura popular.

Carlos Alberto Caetano, o Carlão do Peruche, conta como eram feitas as batucadas e fala de seu orgulho de ter sido engraxate.Resistência
Santos conta que o samba dos engraxates ganhou um aspecto de resistência diante da repressão policial da época. “Desde 1901 o ofício de engraxate era proibido. Em 1935, uma nova lei regulamentou a atividade para maiores de 14 anos mediante licença, mas mesmo assim muitos exerciam a atividade na ilegalidade”, ressalta o pesquisador.

A repressão acontecia nas áreas centrais de São Paulo, onde estavam concentrados os engraxates: nas praças da Sé, Clóvis Bevilácqua, João Mendes e do Correio. “O local onde é hoje a praça do Correio era conhecido como largo do correio ou a prainha. Era principalmente nestes locais que, após o expediente, os jovens faziam suas músicas e dançavam o samba jogando a tiririca”, descreve Santos. Mesmo exercendo o ofício de engraxates eles eram vistos como vadios ou vagabundos. E a origem destes jovens era de bairros considerados, na época, “periféricos” da cidade, como Barra Funda, Casa Verde, Parque Peruche, Cambuci e Glicério, entre outros.

Esta resistência é retratada em alguns sambas da época compostos pelos próprios engraxates ou por compositores já consagrados. Santos conta que um deles, José Pereira, compôs este samba em 1941:

Dizem que engraxate é profissão de vagabundo
Mas ninguém sabe dar valor
A quem merece nesse mundo
Si o trabalho fosse cada um pra si
Deus pra nós todos, eu assim podia agir
Viver de camelagem
Eu penso que não é vantagem
Morando no porão
Dormindo na friagem
Eu desse jeitinho sei me defender, sempre folgazão
Mas honrado até morrer

Em seu estudo, Santos destaca a semelhança dos versos acima com a música “Canto do Engraxate”, composta por Tito Madi e lançada em 1958 pelo Trio Orixá. Outro exemplo de samba sobre o tema é “Lata de graxa”, de autoria do jornalista Geraldo Blota em parceria com Mário Vieira. “A música foi gravada naquele mesmo ano de 1958 pelo sambista Germano Mathias”, conta. “Aliás, Germano foi um ‘divulgador’ da batucada das rodas dos engraxates se apresentando em seus shows batucando na latinha”. Já na década de 1960, o radialista Augusto Toscano compôs a música “O engraxate”.

Osvaldo Barro, hoje com seus 75 anos, descreve a ligação dos engraxates com o samba. Ele também ressalta a elegância da época, já na década de 1950.A graxa e o asfalto
A pesquisa permitiu ao historiador, que é graduado em Ciências Sociais pela Unicamp, estabelecer uma ligação da música dos engraxates com a história das escolas de samba da cidade. Segundo Santos, aquelas batucadas contribuíram para a formação de uma geração de sambistas paulistas e na consolidação do ritmo em São Paulo. “Eram sujeitos ecléticos que se relacionavam com os mais diferentes estratos sociais”, destaca. Entre eles, o pesquisador cita Antonio Messias de Campos, o Toniquinho Batuqueiro, e Carlos Alberto Caetano, conhecido como Seo Carlão do Peruche.

“Ambos trabalharam lustrando sapatos na década de 1940 e, a partir desta experiência e da convivência com as batucadas das rodas, também participavam como ritmistas de escolas de samba da época”, conta. “Seo Carlão foi para a Escola de Samba Flôr do Bosque, localizada no bairro da Saúde, e mais tarde mudou-se para a principal agremiação daquele tempo, a renomada Lavapés”, destaca, acrescentando que Toniquinho Batuqueiro integrou o bloco carnavalesco Garotos do Paraíso e depois foi para a Rosas Negras.

“Juntamente com Sinval, outro engraxate, Toniquinho iria fundar a Escola de Samba Império do Cambuci.” Mais tarde, já em 1958, os dois sambistas (Toniquinho e Seo Carlão) fundaram a Escola de Samba Unidos do Peruche, no bairro do mesmo nome. Seo Carlão conta que desde aquela época tocava todos os instrumentos – cuíca, pandeiro, tamborim, surdo de marcação – e teve a intenção de ir para a Vai-Vai. “Eu já morava no Parque Peruche, que era um bairro operário e distante do centro. Junto com amigos, todos moradores do Peruche, surgiu a ideia de fundar uma escola de samba. “Eles me convenceram e fundamos a Sociedade Esportiva Beneficente Unidos do Peruche.”

Ele conta que a escola ‘nasceu grande’, conquistando títulos em diversas categorias e, em 1961, seu primeiro campeonato na categoria principal. Seo Carlão recorda com orgulho o tricampeonato da escola: 1965, 1966 e 1967. Além deles, o historiador destaca também a participação do sambista Osvaldinho da Cuíca, que atuou como engraxate na cidade já na década de 1950 onde participava, juntamente com outros engraxates, do cordão Garotos do Tucuruvi, no bairro da zona norte da cidade.

Osvaldinho também cita ter conhecido Toniquinho Batuqueiro e lembra que Leônidas, um dos engraxates daquele ponto, cantava muito bem e também era bom na pernada (tiririca). Outro lembrado por Osvaldinho e que também lustrou sapatos em sua época foi Tininho, que viria a ser um dos fundadores da escola de samba Acadêmicos do Tucuruvi, já na década de 1970. Tanto Osvaldinho quanto Seo Carlão destacam a atuação de Germano Mathias, que em seus shows e apresentações acompanhava os sambas tocando com uma tampa de lata de graxa.