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Fogo cruzado

em Opinião
terça-feira, 10 de agosto de 2021

Victor Missiato (*)

Robespierre, líder da Revolução Francesa, que incentivou o uso da guilhotina, acabou sentenciado à morte por esse mesmo instrumento.

No filme Cruzada (2005), o Balião de Ibelin, interpretado pelo ator Orlando Bloom, ao estabelecer um acordo com o líder muçulmano Saladino, questiona-o acerca do valor de Jerusalém (“What is Jerusalem worth?”). Entre os séculos XI e XIII, reconquistar a Terra Santa significava estabelecer uma redenção e uma remissão no plano terreno para milhares de católicos. A partir desses movimentos, uma Europa Moderna passou a ser construída.

Posteriormente, ocorreria a criação do estado moderno português, a unificação espanhola, a expansão marítima, as Reformas Protestantes e a invenção da América. Em todos esses processos, havia um sentimento coletivo voltado para a transformação social dos povos e territórios conquistados. Levar a palavra de Deus e construir um Novo Mundo passaram a ser iniciativas complementares no início da modernidade europeia.

O imaginário cristão e moderno permaneceu entrelaçado até o século XVIII, quando outra etapa da modernidade, ascendeu em algumas regiões europeias, utilizando-se aqui das etapas propostas por Marshall Berman em ‘Tudo que é sólido desmancha no ar’. Alexis de Tocqueville, em ‘O Antigo Regime e a Revolução’, observou atentamente o modo como as revoluções modernas, principalmente a versão francesa, mais radical e universal, apropriaram-se da cultura religiosa no que tange aos aspectos ritualísticos, simbólicos e humanísticos.

De acordo com o pensador francês, “a Revolução Francesa operou, com relação a este mundo, precisamente do mesmo modo que as revoluções religiosas agem com vistas ao outro; considerou o cidadão de um modo abstrato, apartado de todas as sociedades particulares, assim como as religiões consideram o homem em geral, independentemente do país e época”.

Diante disso, heróis, rituais e uma nova relação com o tempo e espaço passaram a compor a gramática social dos novos revolucionários. Conforme bem ilustrou o historiador François Furet, a Revolução Russa absorveu muito da influência da Revolução Francesa em seu projeto revolucionário.

Subjaz dessas construções, narrativas que ainda compõem o universo revolucionário contemporâneo. Dentre as características que permaneceram ao longo do tempo está a tentativa de reconstruir um novo passado, mediante o presente, com vistas a construir uma nova humanidade no futuro.

E uma das principais práticas recorrentes desses processos é a queima de estátuas em diversos países. A partir de uma leitura enviesada e completamente anacrônica, muitos movimentos procuram ver nos antepassados, crimes e práticas seletivas, mediante os grupos sociais a que estes homens e mulheres pertenciam.

Em vista disso, Borba Gato passou a ser considerado um genocida, enquanto o Quilombo de Palmares, que preservava a condição de alguns escravos, é visto como um espaço exclusivo de resistência contra a “opressão branca”. Portanto, estátuas e monumentos continuam sendo utilizados como espaços de transformação da cidade a partir de uma perspectiva autocrática, quando apenas um determinado grupo opta, sem qualquer tipo de deliberação democrática, refazer a cidade com seus heróis.

Evidentemente, não se trata de manter qualquer tipo de endeusamento ao bandeirantismo, ou qualquer ator social que tenha cometido violências no passado, mas preservar a memória e reformulá-la, a partir dos novos conhecimentos e costumes, significa fazer do espaço urbano um ambiente de contínua reflexão e debate.

Exemplos positivos como Berlim e Santiago de Chile, onde memórias do holocausto e da ditadura de Pinochet permanecem em constante diálogo no cotidiano das ruas, ilustram como a cidade moderna pode conviver com seu passado sem a necessidade de apagá-lo e produzir novas meias-verdades. A lição histórica mais clássica dessas tentativas encontra-se na biografia de Robespierre, líder da Revolução Francesa, que incentivou o uso da guilhotina e acabou sentenciado à morte por esse mesmo instrumento.

A lâmina da História costuma ser implacável.

(*) – É doutor e professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie. Membro do Grupo de Estudos Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano (Mackenzie/Brasília) e Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca).