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O novo morreu de velho

em Opinião
segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Gaudêncio Torquato (*)

O “novo” é um traço recorrente da política. Ressuscita, sempre, na alvorada das mudanças de governantes.

Esconde-se nas moitas das administrações, desaparece na poeira da mesmice, mas volta quando os eleitos ou reeleitos abrem um novo ciclo de vida. Em janeiro, o “novo” será entronizado nos assentos do poder executivo, onde vencedores dos pleitos prometem uma revolução. Afinal, ninguém quer posar de velho.
 
Os prefeitos que iniciarão seus mandatos em janeiro de 2025, presidentes em meio de mandato, como Lula, e outros que voltam ao poder, como Donald Trump, nos EUA, começarão a cavalgar na montaria do “novo”. O mantra reaparece: farei grandes mudanças; uma revolução na forma de governar; abrirei uma nova era; é tempo de respirar novos ares. E tome falação.
 
É interessante observar as razões para o uso tão intenso dessa palavra. O que significaria o “novo” na política? Virar a mesa da mesmice, trazer para o leito da administração novos condimentos, mexer no sistema cognitivo dos eleitores, ao prometer uma “Shangri-lá”, o paraíso na terra? E é interessante também ver que nós, pobres mortais, acreditamos nessa promessa palanqueira. No fundo de nossas crenças, temos a esperança de que ela nos ofereça o néctar da felicidade.
 
Lembre-se que os rótulos perderam o sentido num mundo em que o poder político se despenca no despenhadeiro das coisas desacreditadas, embora consigam ainda mexer com a cognição dos mortais. Vivemos na era do pragmatismo, o ciclo em que os seres decidem de acordo com as demandas satisfeitas. Descortinamos o cenário do que Maurice Duverger chamou de tecno-democracia, a democracia das vastas organizações econômicas, do gerenciamento burocrático dos técnicos, dos negócios globalizados, dos capitais voláteis, das unidades interdependentes. É nessa paisagem que se promete implantar a semente do “novo”. Que ganha novas ênfases.
 
Ocorre que este conceito, tão banalizado, nunca deixou de abrigar velhas práticas. Vejam: fazer arranjos nas bases partidárias com o objetivo de garantir emendas constitucionais; abrir o cofre aos políticos para conseguir cooptar apoios; piscar um olho para a direita e outro para a esquerda no esforço de acender uma vela a Deus e outra ao diabo. Isso é coisa d’outrora.
 
A arte da política na era do “pós-qualquer coisa” coloca o interesse geral como salvaguarda de interesses privados. Como sempre, a locomotiva do dinheiro puxa o trem da política. Tiram um imposto aqui, criam outro acolá. Fazem reforma tributária de araque. Ao final da apuração, vai dar o mesmo prejuízo ao bolso dos consumidores. Proíbe-se uma coisa, libera-se outra. Tudo sob o rótulo do “novo”.  
 
E o que esse “novo” tão festejado e enganador embute? Resposta: aquilo que Duverger chama de “simbiose interburocrática”, a política imbricada à economia, uma geleia geral. Vejam o caso dos nossos partidos. Deveriam representar partes da sociedade. Respirar doutrina, ideologia. Pergunta-se: qual o oxigênio que os alimenta? Até o velho PT de guerra, de nítidas feições, tornou-se um frankenstein mal-ajambrado. A banalização da atividade partidária sonoriza os palanques na era do “novo”.
 
O arrefecimento ideológico, o declínio dos entes partidários, dos parlamentos, da democracia atomizada, que se espraiam desde o século XIX, explicam porque os governantes se esforçam para explicar que são inovadores, cumpridores de palavras e não vendedores de ilusões e utopias. Trump, nos EUA, está prometendo inovar com Elon Musk, o empresário mais rico do mundo, dando a ele um tal de Departamento da Eficiência. Os negócios de Musk se cruzam com os contratos de suas empresas com o governo americano.
 
Tocar o que for possível, sem fazer milagres, canalizar os interesses grupais, dar uma no cravo, outra na ferradura – é a velha receita dos “tempos novos”. Estão aí as reformas possíveis, na forma de arremedos de mudanças. Se não forem suficientes, paciência (palavra que muitos gostam de usar), elas representam o caldo das possibilidades.

A receita, prega Lula, é a redistribuição de riquezas. O que significa continuar com os pacotes assistencialistas. Cortar despesas, como defendem os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet, é um Deus-nos-acuda. Luiz Inácio, em seu Lula III, quer repetir o Lula I.

E assim enterramos o “novo” do caixão do velho.

(*) Escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político