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A velha Nova Ordem Mundial

em Opinião
terça-feira, 22 de março de 2022

Victor Missiato (*)

Uma das premissas básicas da modernidade é a compressão do tempo e espaço enquanto sentido da vida.

Tudo está ficando cada vez mais rápido em um espaço cada vez menor. Sentimentos e instituições seguem o mesmo passo. As “suspensões da percepção”, tão bem observadas pelo historiador Jonathan Crary, criam processos quase simultâneos de atenção e alienação do olhar. Na “sociedade do espetáculo”, as histórias de sofrimento do cotidiano em uma guerra tornam-se estórias de engajamento nas redes sociais.
A explosão de ontem perde espaço para a imagem do dia. Tais precipitações do tempo extraordinário estão cada vez mais organizadas em posts, likes e engajamentos e influenciam nas análises acerca dos acontecimentos. Tudo que é sólido se desmancha nas redes. No atual conflito envolvendo Ucrânia e Rússia não são poucos aqueles que adotaram um tom apocalíptico nas primeiras horas de combate.
Diversos foram os textos que cogitaram a iminência de uma Terceira Guerra Mundial, uma Nova Ordem Mundial, até chegarmos ao fim da vida a partir de uma guerra nuclear. Tendo em vista o impacto europeu do conflito — o maior desde a Segunda Guerra –, é compreensível a criação de tais cenários diante da atual conjuntura. No entanto, a fim de compreendermos melhor a atual guerra, é fundamental resgatarmos as mudanças tectônicas ocorridas a partir do século XIX.
Em “A Democracia na América” (1835), Alexis de Tocqueville afirmou que havia naquele momento “dois grandes povos que, partindo de pontos diferentes, parecem avançar ao mesmo objetivo: os russos e os anglo-americanos”. Surgidos a partir da “obscuridade”, sob olhares desatentos do mundo europeu, EUA e Rússia protagonizariam a nova etapa da modernidade a partir da liberdade e da servidão, enquanto o primeiro alcançaria seu fim por meio do interesse pessoal, e o segundo seria guiado pelas mãos de uma pessoa, naquela época, o czar.
As previsões do aristocrata francês se consolidariam somente um século depois, quando após a Primeira Guerra, todos os impérios absolutistas europeus foram dissolvidos e, somente a Rússia com a sua versão comunista, conseguira manter seu poder territorial, reconquistando, entre outras regiões, a Ucrânia, na década de 1920. Dos novecentos até os dias atuais, diversas correntes e projetos políticos influenciaram na geopolítica global, mas a leitura iluminista referente à divisão do mundo entre Ocidente e Oriente insiste em se manter enquanto um padrão esquemático de interpretação e mobilização.
Das Cartas Persas de Montesquieu às cartas de Marx acerca da invasão britânica na Índia, dos textos de Gramsci às estratégias de Kissinger, paira no Ocidente toda uma ordem mundial alicerçada a partir desta dicotomia. No caso dos russos, essa visão foi estruturada a partir da Guerra da Crimeia (1853-1856), quando ingleses e franceses, cristãos e protestantes, aliaram-se aos muçulmanos otomanos e travaram longas batalhas contras os cristãos ortodoxos de Moscou.
A partir desta Guerra, consolidou-se na Rússia uma posição de distanciamento em relação ao mundo ocidental. Tanto Lenin quanto Stalin adaptaram o comunismo da Terceira Internacional a essa dicotomia e, atualmente, tal projeto cultural e intelectual é liderado por Alexsandr Dugin, um dos principais influenciadores do establishment militar russo. No século XX, a visão do Ocidente liberal versus o Oriente autárquico ganhou novos capítulos com a ascensão das potências não europeias, EUA e URSS.
Pela primeira vez na Modernidade, as principais forças geopolíticas não pertenciam ao bloco europeu. As distâncias entre liberalismo ocidental e centralismo oriental aumentaram com o fim do Absolutismo e a derrota do nazi-fascismo. A vitória da Revolução Chinesa, em 1949, aprofundaria ainda mais essa antiga ordem visionária.
Logo após o fim da Guerra Fria, acreditava-se que a hegemonia da globalização iria sufocar o nacionalismo.
Ademais, as teses expostas pelo teórico-estrategista Samuel Huntington, referentes ao “Choque de Civilizações”, eram pulverizadas pelos blocos dos acadêmicos da Teoria Crítica às Teorias Liberais das Relações Internacionais, apesar dos atentados de 11 de setembro indicar outra direção. Desse modo, nacionalismos e conflitos religiosos continuaram a dar o tom dos conflitos em quase todas as partes do mundo, da Guerra da Iugoslávia ao conflito atual, envolvendo Ucrânia e Rússia.
Sendo assim, para além das análises de conjuntura, importantíssimas para vermos o iceberg à frente, é fundamental não esquecermos que a “tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”, como dizia Karl Marx do século XIX. Na antecâmara do escritório presidencial de Vladimir Putin está o retrato de Nicolau I, considerado o czar mais combativo à influência da cultura ocidental na Rússia Imperial.

(*) – É professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré Internacional.