Quando a obesidade dá os primeiros sinais
Estudo com conclusões inéditas associa disfunções no hipotálamo a comprometimento do controle da saciedade em crianças
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Isabel Gardenal/Jornal da Unicamp
Em estudo de doutorado da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, realizado entre 2014 e 2015 no Hospital de Clínicas (HC) da Universidade, crianças e adolescentes obesos apresentaram sinais radiológicos sugestivos de gliose [alteração da substância branca] no hipotálamo. Esse achado pode estar associado ao comprometimento da função de controle do apetite e da saciedade na obesidade infantil, segundo a pesquisadora Letícia Espósito Sewaybricker.
De acordo com a autora do trabalho, que é pediatra, essa é a primeira investigação que comprova que o hipotálamo pode ser funcional e estruturalmente afetado na obesidade infantil, visto que ele é a área responsável pelo controle do balanço energético e da manutenção do peso corporal. O que existiam até aqui eram estudos envolvendo adultos e modelos animais. Com crianças, esse é um resultado inédito.

A doutoranda avaliou a composição corporal e as dosagens de hormônios da saciedade e dos marcadores inflamatórios. Dentre as principais descobertas, ela encontrou correlação entre os menores sinais funcionais do hipotálamo e a maior presença de gliose no núcleo médio basal hipotalâmico das crianças e adolescentes com obesidade.
Essa alteração no tecido hipotalâmico esteve diretamente relacionada à quantidade de gordura corporal e em especial à quantidade de gordura visceral [na região da cintura], sabidamente a de maior risco metabólico.
Letícia também verificou associação entre os sinais de gliose e os níveis séricos de leptina [hormônio que desempenha papel-chave na regulação, ingestão e no gasto energético].

A tese, desenvolvida em linha de pesquisa que envolve “Endocrinopediatria, neuroimagem e imunologia”, dentro do programa de pós-graduação de Saúde da Criança e do Adolescente, foi orientada pelos docentes da FCM Gil Guerra Júnior e Lício Velloso.
Imagens
A pesquisadora trabalhou com métodos de imagem diferentes, entre eles a ressonância magnética quantitativa [chamada mapa paramétrico T2] e a ressonância magnética funcional.
Na ressonância quantitativa, foi verificada a qualidade do tecido através de parâmetros quantitativos. Com isso, foi possível detectar sinais de gliose – que age como uma espécie de cicatriz que se forma pela proliferação de células inflamatórias.
Na segunda ressonância, as imagens significativas foram identificadas funcionalmente no cérebro. A ideia era detectar alguma atividade neuronal com irrigação sanguínea mais intensa. No caso das crianças e adolescentes obesos avaliados, eles apresentaram uma atividade neuronal menor.

Quando se altera o controle do apetite, forma-se um círculo vicioso em que a pessoa (ou o animal) se alimenta mais, não percebe que já está satisfeita e então passa a fazer uma alimentação excessiva. Com isso, vai ganhando peso, e a tendência é de que a inflamação somente piore esse quadro.
A despeito da gliose poder estar associada à causa da obesidade, em estudos com humanos ainda não se chegou a essa conclusão. “Esperamos que novos estudos em breve possam esclarecer essa dúvida”, ressaltou.
Sobrepeso e obesidade
Letícia comentou que, em estudo recente publicado na revista Lancet, comprovou- se que, particularmente em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, ainda se nota um aumento na prevalência da obesidade em ritmo acelerado em adultos [homens e mulheres].
Também conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, no Brasil mais de 30% da população pediátrica já têm pelo menos sobrepeso. Trata-se de um número espantoso. Em países como os Estados Unidos e o Canadá, atualmente a estimativa é de que haja entre 20% e 25% de prevalência de sobrepeso e obesidade nessa população. Esses percentuais já foram até maiores, sobretudo nos Estados Unidos.

Hoje, os norte-americanos têm buscado incentivar a amamentação para reduzir as taxas de obesidade ou de excesso de peso em cerca de 10% da sua população. Na fase escolar, têm inibido propagandas de alimentos ricos em açúcar e gordura, por meio de projetos de lei que vetam a venda casada de comida e brindes para o público infantil, encorajando a oferta de alimentos mais saudáveis nas escolas, em oposição aos junk foods.
“Com a inserção de iniciativas como essas, criou-se um platô no aumento do número de crianças e adolescentes com sobrepeso e obesidade. Mas, no Brasil, estamos vivendo uma fase que os EUA, o Canadá e a Europa já passaram há algum tempo – de intenso aumento da obesidade”, revelou a pediatra.
Para ela, foi surpreendente constatar que, em crianças com média de idade de 12 anos, já se pudesse identificar que o centro-chave de controle para o comportamento alimentar tivesse uma alteração tecidual e que o funcionamento dele também se mostrasse já alterado.
“No Brasil, ainda fala-se pouco, nas estâncias decisórias, sobre os malefícios da obesidade e a necessidade de exterminá-la. Mas tenho a impressão de que temos sementes sendo plantadas e que elas agora começam a germinar. Podemos ver no momento alguns projetos não tão populares ainda sendo discutidos”, expôs Letícia.
O Ambulatório da Criança e do Adolescente da Unicamp, por exemplo, já completou 11 anos de atividade. Na primeira consulta, esse ambulatório tem promovido, de rotina, reuniões de acolhimento às famílias, às crianças e aos adolescentes, abordando aspectos relevantes como atividade física, nutrição, cuidado médico e de enfermagem.
Enquanto realizava sua pesquisa, Letícia contou que mais de 400 pacientes estavam em atendimento nesse ambulatório. “No SUS como um todo, existe uma demanda reprimida para suporte com relação a essas crianças com sobrepeso e obesidade. Muitos pediatras nos centros de saúde tentam cuidar desses casos, deixando os mais graves para os ambulatórios dos hospitais terciários (de maior complexidade), como a Unicamp”, assinalou.
Falta ainda um bom caminho a ser percorrido na assistência aos pacientes pediátricos, frisou a autora do estudo, com diferentes abordagens, com novas pesquisas, com novas terapias e com novas formas mais eficientes de prevenção. “Acho que daí o papel da universidade, como centro especializado, se tornará ainda mais aplicado”, enfatizou.
Deste modo, as pessoas teriam mais informações, fariam escolhas mais acertadas a respeito do que comer, como comer e quanto comer, e buscariam um maior suporte psicológico, pois a relação das famílias com essas crianças às vezes é complicada, pela dificuldade de frustrá-las. “Também deveria-se possibilitar que as pessoas fossem mais ativas, que praticassem mais atividades e combatessem de frente o sedentarismo. Logo, são diversas frentes do cuidar”, pontuou.
A obesidade também foi um dos temas contemplados pela reforma curricular da FCM, disse Letícia. A pediatra integrou a primeira turma da reforma (2001): a 39ª. “Tivemos uma troca interessante com os veteranos, e o novo currículo foi ampliado, valorizando temas que de fato merecem destaque. Afinal, no dia a dia de um centro de saúde, por exemplo, a obesidade é quase uma rotina”, lamentou.