Os homens-cangurus dos canaviais de Alagoas
No dia 19 de novembro de 2014, “18” foi trabalhar equipado com um monitor de frequência cardíaca, além do podão, das botas e de outros equipamentos que utiliza no corte da cana-de-açúcar em uma usina do município de Teotônio Vilela, em Alagoas
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Claudia Izique/Agência FAPESP
Na primeira hora de uma jornada que somaria 10, sob sol escaldante, o coração atingiu picos de 200 batimentos por minuto (bpm). “O coração sai pela boca”, descreveu “18” a Lúcio Vasconcellos de Verçoza que, com o apoio da FAPESP, analisou as condições de saúde e de trabalho nos canaviais alagoanos em tese de doutorado. Neste dia, “18” – um dos 22 trabalhadores avaliados no estudo – cortou 7 toneladas de cana, ingeriu 10 litros de água, caminhou aproximadamente 6 quilômetros e gastou 4.395 calorias.
“Ao final da jornada, a sua carga cardiovascular (CCV) foi calculada em 39,58%, bem acima dos 33% considerados aceitáveis ao final de um dia de trabalho”, sublinhou Verçoza. A média da CCV do grupo monitorado pelo pesquisador foi de 36,62% para uma produção média de 7,3 toneladas e jornada média de 11 horas de trabalho. “Nos canaviais trabalha-se até a exaustão, num grau de desgaste equiparável ao de um corredor fundista”, compara Verçoza. A cada safra, os cortadores de cana perdem peso – no caso de “13”, por exemplo, foram 8,3 kg – e sais minerais, o que provoca distúrbios hidroeletrolíticos, cãibras e dores musculares. “E aí o canguru vai pegando”, diz o pesquisador.
“Canguru” – que nos canaviais paulistas é conhecido como birôla – é o fenômeno extremo de perda de controle sobre os movimentos do corpo. “Trava perna, barriga, braço. Alguns chegam a ter cãibra até na língua. A pessoa fica imobilizada, com o braço colado junto ao corpo. Daí o nome canguru”, explica Verçosa. Quando o canguru pega, a vítima tem que aguardar até o final do dia, sob a lona onde os trabalhadores fazem a refeição – ao lado da carroçaria do caminhão que os transporta desde a cidade até o canavial –, antes de receber atendimento. “Nos canaviais de Alagoas, a exploração é levada ao extremo, anulando, inclusive, o futuro do trabalhador: muitos ficam incapacitados ainda em idade produtiva”, afirma Verçoza.
Com o título “Os saltos do canguru nos canaviais alagoanos”, a pesquisa de doutorado de Verçoza levou o prêmio de melhor tese no 7° Encontro Nacional da Rede de Estudos Rurais, no final de agosto, e será publicada em formato de livro no início de 2017. Ele foi orientado por Maria Aparecida Moraes Silva, do Centro de Educação e Ciências Humanas da UFSCar, que estuda as condições de vida e de trabalho dos boias-frias paulistas há mais de 30 anos.
“O trabalho de Verçoza representa um salto porque, até então, não tínhamos como provar o nexo causal entre o esforço do trabalhador e inúmeros casos de doença e morte”, afirma Silva. “A tese preenche essa lacuna, já que ele teve a oportunidade de colocar um médico na pesquisa”.
Medo, resistências e excesso de burocracia foram alguns dos obstáculos que Verçoza – ele próprio, alagoano – teve que superar até conseguir “colocar um médico na pesquisa”. Teve que contar, principalmente, com a confiança de 22 safristas de Teotônio Vilela, cidade que já tinha sido palco de suas pesquisas na iniciação científica e no mestrado.
Os testes cardiorrespiratórios foram realizados durante a safra 2014/2015 no Hospital do Coração de Maceió; as avaliações físicas, testes ergométricos e o monitoramento da frequência cardíaca foram acompanhados por um especialista. Para avaliação dos distúrbios musculoesqueléticos foi utilizada a versão brasileira do Questionário Nórdico de Sintomas Osteomusculares.
Além dessas informações, registros em caderno de campo, imagens de cortadores de cana e entrevistas com trabalhadores, ex-moradores dos engenhos, trabalhadores desempregados por causa de doença, fiscais, gerentes de usinas, médicos, entre outros informantes, permitiram a Verçoza descrever e analisar – numa perspectiva marxiana, como ele diz – as condições de trabalho e de saúde nos canaviais alagoanos e identificar o que qualifica de “superexploração”.
Esse esforço incluiu até uma investida abortada na pesquisa etnográfica: na tentativa de “vivenciar” as condições de vida dos cortadores fora da situação de trabalho, se instalou em uma casa na vila onde eles residiam. “Mas a situação ficou insustentável: circulou o boato de que eu era policial infiltrado para rastrear drogas e tive que sair dali”.
Em Alagoas, desde os anos 1950 a cana-de-açúcar é explorada nas zonas dos tabuleiros que se estendem de Arapiraca, no agreste, até o litoral. A região alcança até 200 metros de altitude e inclina-se de forma abrupta em direção ao mar. “A produtividade por hectare é mais baixa, já que o solo é menos fértil – o Estado planta cana desde o século 16 – e poucas usinas adotaram a mecanização, algumas em razão da topografia”, afirma Verçoza.
A baixa produtividade é, em parte, compensada pela “superexploração” do trabalho. “Os safristas selecionados devem ser dotados de habilidade e resistência física máxima para atingir as metas fixadas pelo capital agroindustrial”, afirma Verçoza. Entre essas habilidades está “agarrar com um dos braços a touceira de cana, ao mesmo tempo em que se agacha e, com o outro braço, golpeia com o podão para cortar a cana o mais rente possível do solo; depois é preciso se erguer e carregar a cana cortada até o centro do eito”. E isso tudo em meio à fuligem e um calor “inimaginável”.
Nos canaviais paulistas, por exemplo, essa lida diária se traduz em 3.080 flexões de coluna – 1,88 flexão a cada 10 segundos – e, pelo menos, 3.498 golpes de facão no corte de 12,9 kg de cana por dia, nos cálculos de Erivelton Fontana de Laat, que, na tese de doutorado “Trabalho e risco no corte manual de cana-de-açúcar: a maratona perigosa nos canaviais”, realizou análise ergonômica dessa atividade.
O salário é calculado por tonelada de cana que cada trabalhador corta diariamente. Esse cálculo tem como base a quantidade de cana cortada numa área em formato de retângulo com sete “ruas”, chamadas de eito. “Eles ganham R$ 6,72 por tonelada cortada”, diz Verçoza. Considerando a média de produção dos 22 canavieiros avaliados na pesquisa, chega-se a um salário inferior a R$ 50 por dia. As regras foram estabelecidas em acordo entre os usineiros e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Alagoas (Fetag). Para alcançar o máximo de produtividade, as usinas ainda adotam um sistema de premiação – cestas básicas, bicicletas, fogões e rádio – que alimenta a competição entre os cortadores de cana e se traduz em mais esforço no trabalho. “Isso sem falar dos roubos na pesagem da cana, o que rebaixa ainda mais os salários.”
Um quadro semelhante, de superexploração, motivou a deflagração da greve dos boias-frias em Guariba, no Estado de São Paulo, há 32 anos. O mote foi a decisão dos usineiros paulistas de ampliar de cinco para sete o número de ruas nos eitos. Quanto maior o número de eitos, mais trabalho: o percurso que o trabalhador tem que fazer para dispor a cana cortada aumenta, assim como seu dispêndio de energia, reduzindo sua capacidade de corte entre 20% e 40%.
Na greve de Guariba, além da volta do regime de cinco ruas de cana cortadas, os trabalhadores reivindicavam também registro em carteira de trabalho, roupas adequadas e equipamentos de proteção, alimentação e moradia decente enquanto estivessem em trabalho temporário. “A greve acabou tomando um vulto grande, com repercussão na imprensa e no Ministério Público e resultou, na década seguinte, em mudanças significativas nas lavouras de cana paulistas, inclusive no incremento da mecanização no Estado”, lembra Silva, orientadora de Verçoza.
No entanto, ela acrescenta, os altos índices de produtividade continuaram sendo exigidos, atualmente, em torno de 12 a 15 toneladas de cana cortada por dia.