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Privacidade, vigilância do Estado e os seus impactos

em Destaques
sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Leonardo Lemes (*)

A globalização e popularização da internet, o boom das redes sociais, o desenvolvimento da economia baseada em dados, tudo isso aumentou nossa exposição e trouxe à tona uma discussão muito importante: quem coleta e como são tratados os dados pessoais de todos nós?

Pensando em proteger a privacidade dos usuários e dar transparência ao tratamento de dados pessoais foram criadas leis, como a GDPR na Europa, e a LGPD no Brasil, que visam frear a coleta de dados excessiva – e, por vezes, abusiva – por parte das empresas. A importância da privacidade, no entanto, não é uma questão da era digital.

Antes mesmo da popularização dos computadores pessoais, smartphones, assistentes virtuais, gadgets e tantos aparatos tecnológicos que utilizamos, muitos dos eventos que marcaram a história mostram como a falta de privacidade pode causar danos importantes e mudar a vida das pessoas. Três exemplos nos fazem refletir sobre a responsabilidade e segurança das informações, além dos impactos da falta de privacidade para o indivíduo e o coletivo.

  1. – Alemanha Nazista: Controle total – O primeiro exemplo vem lá do século passado, dos anos 30 e 40. Uma das estratégias dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial era obter o acesso dos registros locais dos cidadãos, ou seja, todos os seus dados conhecidos pelo governo. Desta forma, os alemães podiam identificar os judeus e controlar a população, o que os ajudou a invadir diversos países. Na Holanda, todos os adultos eram obrigados a portar um cartão de identificação, sendo que os cartões dos judeus tinham um J carimbado, registro que os levou à morte. O inspetor holandês dos Registros Populacionais, Jacobus Lambertus Lentz, utilizou, junto de sua equipe, todas as informações disponíveis sobre a população para facilitar a busca dos nazistas por judeus. Já a França não dispunha de uma infraestrutura tão extensa de cartões perfurados como a dos Países Baixos, o que dificultava a coleta de novos dados e, por questões de privacidade, o censo não continha informações sobre religião.

De acordo com Carissa Véliz em seu livro “Privacidade é o Poder”, René Carmille, Controlador Geral do Exército Francês, foi o precursor do atual número de previdência social do país ao desenvolver um número de identificação para os cidadãos franceses. O código de barras descritivo possuía números diferentes para características específicas, como profissão, por exemplo.

Além disso, Carmille também organizou o censo de 1941 para todos os cidadãos franceses com idade entre quatro e sessenta e cinco anos. Segundo Carissa, a pergunta de número 11 do censo pedia aos judeus que se identificassem através de seus avós e de sua religião professada. Entretanto, René montou uma operação de resistência e garantiu cerca de 20 mil identidades falsas, protegendo grande parte dos judeus franceses das garras dos alemães.

  1. – China: Controle e Violência – Os uigures são uma etnia majoritariamente muçulmana que vive em Xinjiang, no noroeste da China. Pequim acusa os uigures de promoverem uma campanha violenta pela independência da região, com sabotagens, ataques a bomba, incitando a população à revolta e acusando essa minoria de manter relações com o Talibã. Acredita-se que até dois milhões de uigures e outras minorias muçulmanas foram colocados em uma ampla rede de centros de detenção, sobre os quais ex-detentos contam que foram submetidos a abuso sexual, doutrinação e até mesmo esterilizados à força. A China, embora negue as acusações de abusos dos direitos humanos, confirma a existência de centros de “reeducação” cujo objetivo é prevenir o extremismo religioso e o terrorismo.

Ter menos de 40 anos, viajar para fora da cidade onde mora, recitar o Corão, fazer o download de apps “suspeitos”, não ter endereço fixo ou não estar em dia com o aluguel são características ou comportamentos identificados por um programa de computador que rastreia dados pessoais na província de Xinjiang e que alerta a polícia, o que pode levar um uigur à sua prisão.

  1. – Afeganistão: Terror e perseguição – Recentemente, tivemos a saída dos soldados estadunidenses e da OTAN do Afeganistão, logo após o retorno do Talibã ao poder. Depois de mais de 20 anos de ocupação, o país viu o governo de Joe Biden concluir a retirada nas primeiras horas de 31 de agosto.

Segundo o jornal norte-americano “The Intercept”, antes da retirada dos Estados Unidos, os talibãs tiveram acesso a equipamentos importantes, como o HIIDE (Handheld Interagency Identity Detection Equipment), que era utilizado para cadastrar aliados em solo afegão. Esses dispositivos armazenavam dados pessoais, o que agora permite que o exército Talibã os identifique.

Dias após a retirada das tropas americanas, algumas agências internacionais noticiavam o vazamento de e-mails de aliados norte-americanos. Com esse conjunto de dados em mãos, o Talibã pode facilmente identificar essas pessoas, que temem pela sua própria segurança e, claro, de suas famílias.

Vemos que a proteção dos dados sempre foi vital para o funcionamento de uma sociedade, o que torna ainda mais essencial a segurança das informações individuais no século XXI. É importante agir com responsabilidade no compartilhamento de dados, pois uma vez que informações, fotos e vídeos entram no espaço virtual, dificilmente serão apagadas.

Há um forte movimento para responsabilizar as empresas por danos causados aos cidadãos no vazamento de dados, mas é importante que o usuário também tome precauções ao dividir suas informações e dar permissões a programas, sites e aplicativos. A internet é uma via de mão dupla, na qual quanto mais informações nós temos, mais informações terão sobre nós.

(*) – É Diretor de Cibersegurança da Service IT.