Um passeio na história paulistana para quem visita a Liberdade
Fiz em algum domingo uma visita à feira oriental da Liberdade e como pesquisador da história e memória paulistana, lembrei de algumas reportagens que preparei sobre o bairro ao longo dos anos
As terras às quais pertence hoje parte do bairro da Liberdade serviram no passado a um cemitério de escravos, visto que a região ficava nas cercanias de um muro que protegia a cidade, se bem que nesse tempo São Paulo nada mais era que uma pequena vila. Não pensem em um muro de tijolos ou numa muralha de pedra como a da China ou das antigas cidades europeias, pois pedras nem existiam por aqui. Eram muros feitos em taipa de pilão, com a terra socada entre varetas de bambu para proteger a população dos ataques indígenas visto que para os portugueses, a princípio os nativos da terra poderiam servir como escravos e isso causava ressentimento às tribos que costumavam revidar com ataques ferozes.
Em 1562 houve um ataque especialmente sério e João Ramalho acabou nomeado “capitão de guerra”, pelos poderes constituídos. Depois, a região virou uma espécie de porta dos fundos para quem entrava no burgo paulistano pela Várzea do Carmo. Passavam neste caminho as pessoas provenientes de Santos, em especial os tropeiros e outros serviçais, por isso este acesso leva até hoje o nome de Rua São Paulo. Não havia estradas, depois de vencerem a Serra do Mar, os viajantes seguiam em montarias, geralmente mulas, e antes de entrarem na cidade, mudavam a roupa e lavavam os pés em um córrego que depois de canalizado passou a dar seu nome à Rua do Lavapés, que nada tem a ver com a cerimônia religiosa da quinta-feira santa.
Não há documentação que comprove, mas o imaginário dá conta que Dom Pedro, após proclamar a independência do Brasil, no Ipiranga, continuou por difíceis caminhos de terra até chegar ao burgo paulistano e pode muito bem ter parado no mesmo córrego para se levar e também entrar limpo e asseado na cidade, embora os nobres subissem pela Rua Tabatinguera. Afinal, o príncipe regente estava em início de namoro com dona Domitila, a futura marquesa de Santos e não ia querer entrar em São Paulo, malvestido.
Em meio a sítios e chácaras surgidos ao longo do tempo, os terrenos que compõem a Liberdade faziam parte do início de um caminho usado para quem seguia na direção de Santo Amaro. Quando esses terrenos começaram a ser loteados, uma lei municipal assinada a 20 de dezembro de 1905, criou o Distrito da Liberdade. A princípio vários imigrantes italianos se mudaram para o bairro e só a partir de 1912 é que os primeiros japoneses começaram a se estabelecer no local, e cada vez mais e em tal número que deram ao lugar o aspecto, as características e o rosto oriental que diferencia este bairro dos demais outros.
O cabo Chaguinhas – Mas a história da Liberdade, não se resume apenas aos aspectos da imigração japonesa no Brasil, ela envereda por questões políticas e sociais da São Paulo colonial. O pelourinho da cidade, ou seja, o local onde se expunha para a venda ou se castigava os escravos, abrigava também a forca destinada aos criminosos. Vale ressaltar que a pena de enforcamento só foi abolida no Brasil em 1874 e mesmo assim, aquele ponto continuou sendo chamado de Largo da Forca até 1905, por causa de um acontecimento que comoveu a cidade em 1775, o suplício e morte de um policial, o cabo corneteiro da Legião dos Voluntários Reais, Francisco José das Chagas, mais conhecido como cabo Chaguinhas.
Por um motivo qualquer, o cabo arranjou uma briga com o filho de Martim Lopes Lobo de Saldanha, então governante da capitania, sujeito impopular à sua época e pessoa de gênio violento. Chaguinhas feriu o jovem filho do intendente com uma faca e acabou submetido a um Conselho de Guerra. Não foi condenado à morte e sim à prisão perpétua, mas Martim Lopes não concordou com a decisão e anulou-a, mandando matar o corneteiro. Tal enforcamento cercou-se de fatos incríveis. Na hora da execução a corda arrebentou e o condenado em vez de morrer pendurado, caiu ao chão.
Substituída, a corda arrebentou de novo. Uma outra corda ainda foi usada e pela terceira vez rompeu. O povo presente passou a entender que aquilo era a vontade de Deus e começou a pedir liberdade ao cabo Chaguinhas. O carrasco inclemente, avistou um tropeiro que passava e pediu-lhe um laço de coro cru. Embora a praxe estabelecesse o uso de corda para o enforcamento, o condenado morreu pendurado em um laço de couro cru, causando tamanha comoção que os moradores acabaram erguendo no lugar da antiga forca, uma capela à qual deram o nome Santa Cruz dos Enforcados.
No século XX essa capela foi reconstruída, ampliada e lá existe hoje a Igreja dos Enforcados que ainda recebe diariamente centenas de fiéis acendendo velas por intenção aos finados por mortes violentas. Nesta praça começa o bairro da Liberdade, cujo nome oficial é explicado como em comemoração à abolição da escravatura, mas por que não também em clamor à liberdade do cabo Chaguinhas, manifestado pela voz do povo naquela triste tarde do longínquo século 18?
A feira da Liberdade
O destino transformou a Praça da Liberdade num ponto de encontro da paz. É em frente à Igreja dos Enforcados que acontece aos domingos uma feira com artigos e comidas típicas do Japão e dos outros países asiáticos, promovendo um encontro de harmonia entre brasileiros e os povos de pele amarela, olhos puxados e seus descendentes. O nome oficial desse encontro de raças é Feira de Arte, Artesanato e Cultura da Liberdade, com eventos especiais alusivos às datas comemorativas da cultura e costumes desses países. Uma das festas mais tradicionais é a Toyo Matsuri, promovida todos os anos em agradecimento às graças recebidas, onde já se pede a bênção para o novo período que começa.
Na Praça da Liberdade, se inicia a Rua Galvão Bueno que oferece aos paulistanos um pouco das imagens do Japão, por ostentar luminárias típicas do oriente. Essa rua que homenageia um antigo advogado, recebe a maior concentração de moradores e comerciantes japoneses, chineses, coreanos, tailandeses e tawaineses do Brasil, com suas lojas e hotéis onde se fala a língua de origem desses países. Há restaurantes que oferecem durante as 24 horas, sushi, sashimi, yakisoba. A vida noturna no bairro é repleta de karaokês e outras atrações. Pena que os cinemas que exibiam filmes com legendas em japonês fecharam. O ator Bruce Lee ganhou fama no Brasil graças aos filmes dele, exibidos primeiro, nos cinemas da Liberdade, durante a década de 1970.
A Associação dos Lojistas da Liberdade, informa que o bairro possui mais de 200 estabelecimentos comerciais variados, com lojinhas que vendem tudo que é típico da cultura oriental. Mas não é preciso ser japonês para se sentir bem na Liberdade. Pessoas de todos os lugares vão ao bairro regularmente para se abastecer, por exemplo, de cosméticos e maquiagem. Na Galvão Bueno, fica a Ikesaki, uma loja que mais parece um supermercado só de xampus, sabonetes, hidratantes e uma infinidade de produtos que deixam não só as mulheres mais bonitas, mas também os homens.
As luminárias que leva o visitante a se sentir como em uma rua de Tóquio, chegaram ao bairro em 1974, por iniciativa do então prefeito Miguel Colassuono, que assim caracterizou a Liberdade como bairro oriental de São Paulo. Toda a imigração oriental e seus descendentes têm seu espaço. Os de Taiwan construíram, em 1983, o templo budista Quan – Inn, na Rua Conselheiro Furtado, facilmente avistado por quem passa de carro pelo elevado no sentido da zona leste. O templo é lindo, mas seus fiéis frequentadores são de poucas palavras e não há ninguém que se disponha a dar explicações sobre a construção. Sabe-se apenas que o lugar também é frequentado por chineses.
Outro prefeito paulistano, Jânio Quadros, ampliou em 1986 os limites pertencentes ao bairro da Liberdade que hoje abraça ruas que antes pertenciam à Aclimação, como a Tamandaré e a Pires da Mota, entre outras, inclusive no Cambuci e Glicério. Com isso o bairro se orgulha de possuir três estações do Metrô, são elas: Vergueiro, São Joaquim e Liberdade. Poderia escrever mais coisas sobre o bairro, mas hoje ficamos por aqui.
(*) Geraldo Nunes, jornalista e memorialista, integra a Academia Paulista de História. ([email protected]).