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Os 100 anos da gripe espanhola e o boato da neve em São Paulo

em Colunistas, Geraldo Nunes
sexta-feira, 31 de agosto de 2018
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Nossos bisavós que viveram na Pauliceia durante a década de 1910 mencionaram em suas histórias contadas ao longo da vida que um dia fez tamanho frio que chegou a cair neve em São Paulo. Para os mais precisos houve até uma data para o fenômeno: 25 de junho de 1918.

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Na verdade, não chegou a nevar, mas aconteceu uma forte geada. Ao se fazer a checagem dos registros oficiais obtidos de um observatório astronômico e meteorológico, localizado junto ao Trianon, em plena Avenida Paulista, se constatou que, de fato, a cidade enfrentou na madrugada daquela citada por nossos antepassados, uma temperatura baixíssima, seguida de forte nevoeiro que ao chegar ao solo e encontrá-lo extremamente frio, sublimou. Quer dizer, passou do estado gasoso para o sólido, confirmando-se assim, o fenômeno conhecido como geada.

Uma antiga caderneta com os registros das condições do tempo na cidade, comprova que na data citada, não havia nebulosidade, ou seja, o céu estava limpo, sem nuvens e a neve ocorre somente quando existe cobertura de nuvens. Portanto não nevou e sim geou. A temperatura chegou a 3,2 graus negativos e se atribui a informação sobre neve ao folclore popular.

Como em São Paulo havia muitos imigrantes europeus que conheciam a neve, mas, desconheciam a geada, uma palavra acabou substituindo a outra. Os jornais também fazem referências à madrugada gelada de 1918. O “Estadão” menciona quem em lagoas próximas ao rio Tietê, a água solidificou.

“O inverno de 1918 foi de fato, muito intenso, talvez o mais frio da história registrado na cidade”, escreve José Roberto Walker em seu livro “Neve na Manhã de São Paulo” (Companhia das Letras/2017), baseado em um diário coletivo escrito pela turma que daria origem à Semana de Arte Moderna de 1922. Neste livro Walker confirma a informação do observatório da Avenida Paulista que funcionou de 1916 a 1930, confirmando em seu texto a temperatura negativa de 3,2 graus centígrados.

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Soldados americanos infectados pela gripe espanhola (Foto: National Museum of Health and Medicine, Armed Forces Institute of Patholog).

O nome da obra, “Neve na Manhã de São Paulo”, se deve ao fato de naquela madrugada, que pode ter sido mesmo a mais fria da história de São Paulo, o modernista Oswald de Andrade ter relatado em seu diário secreto um encontro que teve com uma jovem garçonnière à qual chamou de “Miss Cyclone”, uma sedutora mulher com a qual fez amor, conforme ele mesmo descreve, “sobre um tapete macio com uma intensidade nunca reprisada naquela sala de pé-direito alto, desprovida de lareira”.

Ao deixarem o recinto, no amanhecer, Oswald e “Cyclone”, encontraram a Rua Líbero Badaró coberta por uma forte camada de gelo ou simplesmente “a neve que ali compareceu para saudar o amor de um homem e uma mulher”, descreveria.

As consequências desse frio intenso para a cidade de São Paulo, a partir do início de agosto, foram outras e bem piores. Houve a proliferação de uma epidemia de gripe, vinda da Europa, matando milhares de pessoas na Pauliceia, obrigando a prefeitura a construir às pressas o cemitério São Paulo, localizado na Rua Cardeal Arcoverde, pelo fato de não mais haver lugares para tantos sepultamentos. Faltaram até coveiros, porque muitos deles após tantos enterros também ficaram doentes e morreram.

Acredita-se que no mundo entre 50 e 100 milhões de pessoas perderam a vida em decorrência da gripe espanhola, representando nada menos que 5% da população mundial da época. No Brasil foram cerca de 30 mil o número de indivíduos contaminados, inclusive o presidente eleito Rodrigues Alves, que não chegou tomar posse, assumindo em seu lugar, já no início de 1919, o vice-presidente Delfim Moreira. Este, obedecendo à constituição vigente convocou novas eleições para quatro meses depois.

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Oswald de Andrade e Daisy, a Miss Cyclone: uma grande paixão.

Acredita-se que o vírus tenha chegado ao país em navios vindos de Portugal trazendo a bordo doentes infectados na Europa. Com o tempo soube-se que em 4 de março de 1918, um soldado da base militar de Fort Riley, nos Estados Unidos, ficou de cama, com sintomas de uma forte gripe. Esse acampamento no Kansas treinava cidadãos americanos para a Primeira Guerra Mundial. Naquela primeira semana de março, mais de 200 soldados adoe­ceram da mesma maneira.

Em apenas 14 dias, outros mil militares foram parar em hospitais e o mal se alastrou por outros acampamentos. No pico da epidemia, mais de 1500 militares reportaram a enfermidade em um único dia. A doença se espalhou rapidamente pelos EUA, pegou carona com os soldados americanos que embarcaram para a Europa e de lá ganhou o mundo com o título de gripe espanhola, embora o mal fosse originário da América do Norte.

Hoje os médicos dizem que o vírus por trás daquela pandemia é agora um velho conhecido nosso: o Influenza H1N1 que naquela época fazia com que as pessoas sangrassem pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos

“Ficavam azuis com a falta de oxigênio”, segundo os jornais de 1918, que acrescentavam o fato de algumas pessoas, passando mal pela manhã, imediatamente morriam no período da tarde.

Os vírus da gripe se apoderam das células do nariz e da garganta e o H1N1, do início do século 20, mantinha esse traço, mas parecia infectar expressivamente as células dos pulmões com maior rapidez. Não havia os antibióticos de hoje, a penicilina seria descoberta somente dez anos depois.

Outra característica, entretanto, permanece intrigante: o ataque do Influenza costuma ser mais forte em crianças e idosos, que possuem sistema imune mais frágil. Em 1918, porém, as principais vítimas foram os adultos jovens, tanto civis quanto soldados no front. Uma hipótese é que, justamente por ter uma imunidade mais proativa, a resposta do organismo jovem era mais vigorosa naquele tempo.

Por isso ficaram histórias contadas não só do frio, mas de crianças como o empresário Waldemar Rossi, que dizia ter superado a gripe espanhola pelo fato dele e seus irmão terem tomado doses e mais doses de Emulsão Scott, um remédio de gosto horrível feito à base do óleo de fígado de bacalhau, “que a garotada era obrigada a ingerir sob ameaça de chinelos”, dizia.

A comediante Dercy Gonçalves contou certa vez, ter escapado da gripe de 1918 pelo fato de ter subido em um limoeiro e chupado, durante um dia inteiro, todas as frutas que nele havia. Municiada de vitamina C, resistiu.

Não há registro, porém, de relatos deixados pelo modernista Oswald de Andrade sobre a gripe espanhola, apenas a descrição apaixonada de sua intensa noite de amor ao lado de “Miss Cyclone”, a musa daquela madrugada fria de 25 de junho de 1918, quase perdida no tempo.