No final do mês passado, a Polícia Federal deflagrou a “Operação Camarote” para investigar o caso da empresa de transporte de Belo Horizonte, cujos proprietários, Robson e Rômulo Lessa teriam, supostamente, comprado vacinas da Pfizer contra a Covid-19 para vacinar seus familiares e amigos (inclusive políticos), clandestinamente, em uma garagem da companhia.
A reportagem intitulada “Questões de privilégio – Empresários tomam vacinas às escondidas”, veiculada pela revista piauí ao final do mês passado, causou questionamentos por parte da sociedade e da opinião pública, visto que, a compra de vacinas contra o Coronavírus pela iniciativa privada só está autorizada para repasse integral das doses, a título de doação, ao Sistema Único de Saúde (SUS) – pelo menos enquanto o grupo definido como de maior risco, 77 milhões de brasileiros, não estiver totalmente imunizado.
Tudo isso para não provocar uma concorrência entre compradores privados e governos, o que causaria uma inequidade na distribuição das vacinas (até agora apenas cerca de 30 milhões de cidadãos foram vacinados), fazendo prevalecer outros critérios que não o estabelecido, pelos órgãos competentes, como sendo o melhor para minimizar riscos de morte pela doença para o maior número de brasileiros.
E por que estamos remoendo um episódio no qual, um mês depois de ocorrido, as investigações já apontam para o fato de que tudo não passou de um golpe, aplicado em mais de 80 pessoas por uma falsa enfermeira, e que que não houve ligação nenhuma com a Pfizer ou qualquer outra farmacêutica que esteja comercializando imunizantes contra a Covid-19?
Principalmente porque, após esses fatos, acendeu-se um outro debate, desta vez no âmbito legal, no qual criminalistas avaliam se houve de fato um crime cometido pelos cidadãos que teriam comprado a vacina da falsa enfermeira, visto que, agora, são considerados apenas vítimas de seu golpe.
Se ficar comprovado que esse foi realmente o caso, de vacinação com imunizante falso, as únicas pessoas que poderão ser responsabilizadas criminalmente serão a falsa enfermeira e os assistentes que a ajudaram a aplicar as doses, desde que estes últimos também soubessem que as vacinas eram falsas na ocasião da sua aplicação, tornando-os cúmplices do esquema.
Já os indivíduos que compraram e tomaram a falsa vacina, não tendo sido imunizados de fato, mas sim recebido um soro inócuo, não poderão ser condenados pelo crime de “furar a fila” da vacina, muito menos pela clara intenção de cometê-lo (já que queriam e podiam pagar pelo privilégio), praticando um ato antiético contra os mais de 170 milhões de brasileiros que aguardam ansiosamente sua vez na fila, de acordo com a priorização estabelecida pelo governo.
Esse caso, ao meu ver, apresenta um dilema não apenas jurídico, mas principalmente moral e ético, o qual deveria ter sido mais amplamente debatido pela imprensa, legisladores e sociedade, já que os supostos “fura-filas” da vacina – empresários, amigos, políticos e cidadãos de classes mais altas – não sofrerão nenhuma medida punitiva.
Com base na minha experiência profissional e de governança, posso afirmar que, diariamente, somos confrontados com dilemas muitas vezes de caráter ético e moral, onde a linha do “Eu quero” e do “Eu posso” precisa ser muito bem ponderada pela reflexão fundamental que todas as pessoas envolvidas nesse episódio não fizeram: a do “Eu devo?”.
Somos mais de 170 milhões de cidadãos brasileiros “querendo” a vacina. Nem todos “podemos” ter acesso a ela no momento, seguindo a ordem de prioridade estabelecida pelo governo (fila da vacina); porém, se fôssemos agraciados com a oportunidade de nos vacinar e aos que amamos, faríamos essa pergunta essencial a nós mesmos: “Eu devo?” E tomaríamos esta decisão independentemente de estarmos cientes ou não das consequências da lei que nos pune ou oferece uma lacuna para nos inocentar juridicamente, mas não da imoralidade e da falta de ética?
E assim, esse é mais um triste episódio de falta de cidadania, moral e ética, que tende a ficar sem correção. Chego à conclusão de que no Brasil, quando não é estabelecida a ilegalidade (ou possibilidade do fato vir a público), a moral e a ética deixam de ser questionadas e por sua vez aplicadas nos julgamentos, gerando um desafio para a grande maioria dos programas de governança nos setores público e privado, que infelizmente ainda tendem a funcionar de forma teórica, ou seja, somente no papel. Realmente, o Brasil precisa de muito mais vacinas para combater epidemias, inclusive no âmbito da integridade moral e ética, para que a sociedade não fique à mercê de doenças que vem provocando a morte lenta de sua cidadania.
Saiba quem é a nossa Colunista: Denise Debiasi é Country Manager e Líder de Investigações Globais e Inteligência Estratégica da BRG Brasil, braço local da consultoria americana Berkeley Research Group (BRG), presente nos 6 continentes e mundialmente reconhecido pelo expertise e reputação de seus profissionais nas áreas de investigações globais e inteligência estratégica, governança e finanças corporativa, conformidade com leis nacionais e internacionais de combate à corrupção, antissuborno e antilavagem de dinheiro, arbitragem e suporte à litígios, entre outros serviços de importância primeira em mercados emergentes.
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