Daniel Medeiros (*)
“Eu amo, sou louca por ele, e serei feliz, ter filhos, minha casa tão sonhada. Ficar velhinha com ele, como é bom pensar e viver isso”.
Maria foi uma mulher que trabalhou para mim e que conheci há muitos anos. Acompanhei – de longe – esse envolvimento amoroso, o sorriso que ele provocava nela, as canções que ela entoava enquanto arrumava meu apartamento e as brincadeiras que eu fazia quando a via assim: “que alegria, heim, Maria?” E ela: “é o amor! Não tem coisa melhor!”.
E não deveria mesmo ter coisa melhor. O encontro de alguém com quem dividir segredos e esperanças, projetos e realizações. Maria pensou ter achado. O “seu homem”, como ela dizia – o sorriso mesclando-se às palavras cheias de carinho – conhecera-o há quatro anos, na igreja que ela frequentava. Homem fervoroso, trabalhador (bebia só um pouquinho, nada exagerado, só fim de semana), sempre preocupado com o futuro, carinhoso com ela, atencioso.
Foram se conhecendo, ele nunca “avançou o sinal”, respeitoso que ela quase ficava desconfiada (e aí Maria soltava sua risada gostosa, livre, autêntica). A coisa foi ficando séria e não teve jeito: casaram. Fui padrinho, dei geladeira – branca, duas portas, com freezer – ela quem pediu, dizia ser um luxo que sonhara desde menina, poder guardar carne pro mês inteiro, como fazia na minha casa de homem sozinho.
Esse romance durou perto de dois anos. Um dia, a vizinha dela ligou, dizendo que Maria não poderia vir para o trabalho. Doença, afirmou. Preocupei-me, liguei para a casa dela, ninguém atendeu. Não vou me delongar, nem fazer suspense. Nunca mais vi Maria. Naquele dia, o marido, em uma cena de ciúme – um colega de bar disse algo sobre a alegria dela, o sorriso dela, algo sobre um outro membro da igreja, algo sujo e podre – bateu nela até desfigurar seu rosto.
Quebrou o braço direito em três partes. Furou o baço a chutes e ela morreu antes mesmo de chegar ao hospital. O homem fugiu. Nunca mais o viram. Nunca houve punição. Soube uns dias depois, quando liguei para a vizinha. Ela me disse sem emoção: “o marido parece que pegou ela num lance com outro homem e acabou com a raça dela. Não quis falar no dia porque achava que seria surra à toa. Mas acabou matando”.
Isso foi há 15 anos. Nunca esqueci da brutalidade, da gratuidade, da desumanidade do motivo de agressão tão desproporcional, absurda, incoerente, insana. O homem que a amava quebrou-a como a um graveto, deformou-a como a uma garrafa plástica. Eliminou-a. O inquérito resta inconcluso, sem prisão, sem condenação.
Há 10 anos, outra Maria inspirou uma Lei para proteger Marias dessa violência inaudita. No seu artigo 20, afirma: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”.
Ah, minha amiga Maria. O quanto vasto é o mundo e quantos homens poderiam ter entendido esse texto tão óbvio, óbvio, óbvio. Mas ainda quantos homens (ora, homens!) buscam ainda explicar, justificar, contemporizar, amenizar sua covardia e bestialidade.
A lei Maria da Penha é um avanço? Sem dúvida. A lei Maria da Penha nos envergonha? Sem dúvida.
(*) – É doutor em Educação pela UFPR e professor de Filosofia no curso Positivo.