Sérgio Mauro (*)
No “inferno” em que vivemos não nos é difícil prever certos fatos do futuro.
No canto X do Inferno, da Divina Comédia de Dante Alighieri, o poeta-viajante, isto é, a personagem Dante, encontra no círculo destinado aos hereges Farinata Degli Uberti, líder político de uma facção contrária ao partido apoiado pela família Alighieri.
Após um embate político, evidentemente vencido por Dante, usando e abusando da sua privilegiada condição de um vivo que dialoga com almas punidas para sempre pela implacável justiça divina, revela-se o que inicialmente parecia obscuro, após a interrupção do animado (e acalorado) debate político provocado pela aparição de outro personagem, isto é, o pai do ilustre poeta Guido Cavalcanti: Deus concede a essas almas do inferno o poder de prever o futuro, associado, na crença medieval, a forças malignas, demoníacas, mas não o de conhecer o presente.
Do mesmo modo, no “inferno” em que vivemos não nos é difícil prever certos fatos do futuro, mas encontramos dificuldade em avaliar corretamente o atual momento por que passa a humanidade. Basta analisar três acontecimentos recentíssimos: o tiroteio no Texas, a queda de um avião em Cuba e a policial à paisana que matou um bandido em frente a uma escola paulistana.
O que os torna previsíveis: o fato de que poderiam ser evitados, frutos que são de situações que se repetem e cujas causas são facilmente identificáveis. O caso do tiroteio em Houston, no Texas, parece-se cada vez mais com a advertência que as autoridades mandam colocar nas garrafas de bebidas alcoólicas: o abuso no consumo (uso) de armas de fogo pode ser prejudicial à saúde! Donald Trump atribui sempre os massacres a desvairados que pegam em armas, não cogitando sequer um controle mais rigoroso sobre a venda de armamentos (até pesados).
No caso do gravíssimo acidente aéreo em Cuba, embora seja preciso contar sempre com possíveis fatalidades, é muito fácil perceber que se trata de um enésimo caso de péssima manutenção de aeronaves, descartando-se possíveis atentados terroristas. Falha humana? Talvez, mas, considerando as condições econômicas da ilha do finado Fidel Castro, é mais fácil apostar na falta de dinheiro para manter os aviões em boas condições.
Com relação à policial à paisana que matou um bandido na porta da escola, a discussão recai sobre o uso da legítima defesa, sobretudo por parte de um agente da segurança pública. Até que ponto podemos estabelecer que se trata de um ato de legítima defesa? Teria sido possível reprimir o assalto sem eliminar fisicamente o criminoso? Neste caso, não há como evitar a comparação com as vacinações em massa promovidas pelo poder público, quando seria muito mais fácil e eficaz trabalhar na prevenção de certas doenças facilmente evitáveis.
Impedir, por meio de uma ação preventiva e inteligente, que bandidos se aproximem de locais públicos em que se encontram crianças indefesas, teria evitado a morte do próprio bandido e o uso político da pronta reação da policial, condecorada por postulantes ao cargo de Presidente da República que não perderam a chance de demonstrar suposto apoio à “linha dura” no combate ao crime.
Os casos citados aparentemente pertencem a uma trama (maligna?) tecida por um ignoto autor que se repete sem cessar e nos torna infelizmente semelhantes às almas do inferno, possuidoras do dom de prever o futuro, mas inaptas para a compreensão do imediato. Não é difícil supor que tais acontecimentos vão se repetir muito em breve, ainda que com personagens e locais diferentes.
Resta-nos concluir que por termos capacidade, ao menos parcialmente, de prever o futuro, mas dificilmente conseguimos entender o presente, não me parece arriscado afirmar que vivemos numa espécie de “inferno”, semelhante ao imaginado por Dante. Concordo integralmente com o que afirmou Italo Calvino, outro grande escritor italiano do século XX, o qual acreditava que no inferno em que vivemos é preciso fazer todo tipo de esforço para encontrar possíveis “paraísos”.
No entanto, a repetição dos tristes acontecimentos e a nossa inércia diante deles nos leva a crer que o divino poeta estava na verdade representando um pedacinho do nosso mundo infeliz nos círculos do inferno, e o incrível esforço empreendido pelo viajante no mundo das almas para alcançar o paraíso nos parece impossível de ser realizado na prática, ou então, não acreditamos em sua viabilidade ou até mesmo em sua necessidade.
Enfim, Dante nos deu uma lição e nos indicou um caminho. Contrariando Calvino, porém, preferimos continuar lidando com o futuro e fazendo fáceis previsões de catástrofes infernais, em vez de nos esforçarmos para buscar possíveis paraísos!
(*) – É professor de língua e literatura italianas da Unesp de Araraquara.