Transpondo a Cortina de Ferro: relatos de viagens de brasileiros à URSS
Cenário descrito pelos viajantes permite uma compreensão plural da sociedade soviética durante a Guerra Fria
A delegação de professores estrangeiros em frente aos edifícios principais da nova Universidade de Moscou. Foto: Reprodução/Livro A Educação na URSS (1953) de Paschoal Lemme
Ivanir Ferreira/Jornal da USP
Quem se atreveria a fazer turismo na União Soviética nas décadas de 1950 e 1960, em plena Guerra Fria – período histórico de disputas estratégicas e conflitos entre os EUA e a URSS? Dos brasileiros que foram, incluindo juízes, escritores, jornalistas, professores e operários, muitos se deslumbraram com a sociedade observada, mesmo estando em um sistema político fechado; outros rechaçaram as diferenças sociais encontradas e a ausência de liberdade.
A representação que cada viajante construiu da região, quando transpôs a fronteira, variou de acordo com sua posição ideológica na época em que realizou a viagem, normalmente planejada por duas instituições estatais russas, a VOKS e a Intourist. As narrativas polifônicas fazem parte da pesquisa Transpondo a Cortina de Ferro: relatos de viagens de brasileiros à União Soviética na Guerra Fria (1951-1963), desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Segundo Raquel Mundim Tôrres, autora do estudo, as narrativas possuem um viés historiográfico instigante e documental. Os brasileiros que viajaram para a União Soviética a lazer também tiveram uma missão política. “Compreender os trâmites de uma sociedade, observar seu cotidiano, anotar informações e dados passados pelos guias e, finalmente, se posicionar sobre o que era observado”, afirma a historiadora.
A pesquisa foi baseada em narrativas publicadas em forma de livro de homens e mulheres (trinta e três livros para cinquenta e quatro autores) dos mais diversos setores sociais: políticos, operários, escritores, jornalistas, sindicalistas, médicos, juízes, professores, jovens militantes e esposas descritas como acompanhantes de seus maridos, e que foram divididos em grupos para sistematização do estudo: comunistas, simpatizantes, anticomunistas e aqueles de ideologia não definida. Dentre os turistas, foram encontrados vários personagens ilustres, inclusive da literatura brasileira, como os escritores Jorge Amado e Graciliano Ramos, conhecidos por serem comunistas.
Em uma fábrica de caramelos em Leningrado. Foto: Foto: Reprodução/Livro 25 dias na URSS (1954), de Olympio Fernandes Mello
Nas descrições de chegada ao país foi comum encontrar nas narrativas expressões como “novo mundo”, “paraíso terrestre” ou “inferno terrestre”, “fronteira entre dois mundos”, o que denunciava a importância e o peso da viagem para os autores, a sensação de estarem entrando em um mundo completamente diferente do que conheciam. Nos depoimentos dos viajantes “era comum encontrar diferentes impressões sobre os mesmos lugares, pessoas, tratamentos e experiências. A descrição de uma mesma cena poderia servir, inclusive, de evidência para ideologias opostas”, relata Raquel.
Ao visitarem igrejas ortodoxas e católicas, que se encontravam abertas e com poucos frequentadores, os comunistas e simpatizantes realçaram o fato de elas se encontrarem abertas, o que servia para denunciar a falsidade de notícias anticomunistas que diziam que não havia liberdade religiosa na URSS; já os anticomunistas aproveitavam para denunciar o esvaziamento de fiéis, a submissão da igreja ao Estado, como forma de demonstrar as consequências da perseguição religiosa promovida pelo governo soviético.
Raquel aponta ainda que, de forma interessante, alguns viajantes fizeram relatos que iam de encontro ao seu próprio perfil ideológico em relação às representações da então URSS. Eles “conseguiram fugir da bipolaridade e do antagonismo do imaginário da Guerra Fria”. Foi o caso do escritor Graciliano Ramos que, embora fosse membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), demonstrou desconfianças da hospitalidade oferecida pela VOKS e Intourist.
“Graciliano teve uma visão favorável no que diz respeito ao dia a dia das fábricas, das escolas e das fazendas coletivas soviéticas, além de também fazer elogios a Stalin como líder e defensor da classe trabalhadora, mas parecia incomodado com aspectos luxuosos de suas acomodações, com as regalias e com as gentilezas excessivas de seus guias”, diz Raquel. Já Jorge Amado foi o autor de um dos relatos mais propagandísticos e favoráveis à União Soviética, sendo inclusive um dos poucos a defender a imprensa estatal da URSS. “Jorge Amado era um escritor extremamente reconhecido na URSS, tendo algumas de suas obras já traduzidas para o russo no início da década de 1950”.
Milhões de russos, há 28 anos, em filas quilométricas, desfilam diante do corpo de Lenine, cujo túmulo, em frente ao Kremlin, na Praça Vermelha, serve de culto à Pátria. Foto: Reprodução/Livro Moscou, ida e volta (1952), de José Edmar de Oliveira Morel
Das narrativas, os anticomunistas eram a minoria – apenas cinco autores – um engenheiro e quatro jornalistas. Orlando Loreiro, que trabalhava na Folha da Tarde de Porto Alegre, juntamente com os outros companheiros de profissão, demonstrou profunda indignação com a falta de liberdade de expressão do povo soviético: “Todos os jornais, direta ou indiretamente, estavam nas mãos do próprio governo. Oficialmente, o Pravda é o jornal do Partido Comunista, o Izvestia é o órgão do governo russo, porém, todos os demais jornais soviéticos estavam subordinados a esses dois diários da imprensa comunista”, relata em seu depoimento.
O custeio das viagens dos brasileiros era feito pelo governo soviético por intermédio das agências de viagens russas – a VOKS e Intourist – que planejavam e gerenciavam o roteiro turístico a fim de levar o visitante a conhecer os “bastidores” e o cotidiano dos soviéticos. Por conta da ausência de laços diplomáticos entre Brasil e URSS entre 1947 e 1961, o convite normalmente surgia em eventos internacionais nos quais os brasileiros já tinham saído do País para participar de conferências.
Raquel Tôrres, historiadora e autora da pesquisa. Fot: Arquivo pessoal
Em geral, as mulheres viajavam na categoria de acompanhantes ou de familiares, como foi o caso de Edy Duarte Pereira e Heloísa Helena Duarte Pereira, esposa e filha de Osny Duarte Pereira; Heloisa Ramos, esposa de Graciliano Ramos, e Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado. As narrativas de mulheres brasileiras possibilitaram também à pesquisa algumas considerações a respeito de questões de gênero. Muitos viajantes relataram impressões de espanto ao observarem a presença da mulher soviética em diversos tipos de serviços em que as mulheres brasileiras da época não trabalhavam.
A historiadora acredita que a análise desse material possibilitou uma maior compreensão da complexidade e da diversidade dos imaginários políticos construídos sobre a União Soviética na época da Guerra Fria. “Realidades múltiplas e impossíveis de serem classificadas em apenas dois campos, através de conceitos binários como verdadeiro/falso e bom/mau.” Devido à importância do conteúdo historiográfico e pelos aspectos curiosos e inéditos da pesquisa, Raquel aposta na possibilidade de publicação de um livro voltado para o público em geral.