Sob a lona, o poder do riso
Uma escola do riso, que ensina para o teatro e para a vida, com métodos próprios e uma infinidade de saberes. A definição é a que melhor cabe ao objeto do estudo da atriz e pesquisadora da Unicamp, Fernanda Jannuzzelli Duarte: o circo-teatro brasileiro. Em tempo: a consideração de Fernanda Jannuzzelli não é desprovida de paixão e conhecimento de causa
Amilton Pereira Junior, o Tubinho, descendente dos fundadores do circo, |
Silvio Anunciação/Jornal da Unicamp
Logo após concluir sua dissertação de mestrado sobre o circo-teatro, a pesquisadora deixou seus projetos pessoais e profissionais mais estruturados para se dedicar inteiramente à atividade nômade de atriz do Circo de Teatro Tubinho, umas das companhias itinerantes de lona estudadas em sua pesquisa. Além do Tubinho, um dos maiores representantes do circo-teatro no país atualmente, a atriz estudou o Pavilhão Arethuzza, uma das companhias mais bem sucedidas do início do século XX, que encerrou suas atividades na década de 1960.
“Existe um saber dentro desta lona e das lonas pelo país que, muitas vezes, os próprios circenses não têm a dimensão que eles possuem ter. Há um arcabouço de se fazer teatro que é único. É uma escola neste sentido porque se aprende a trabalhar de uma forma que é preciso estar, a qualquer momento, pronto para entrar na cena”, considera Fernanda Jannuzzelli, graduada em artes cênicas pelo Instituto de Artes (IA) da Unicamp.
Ela acrescenta que no Circo de Teatro Tubinho, cujo espetáculo envolve somente a parte teatral, há uma apresentação diferente todos os dias, com uma média de duas horas de duração. “Os ensaios acontecem durante o dia e, já à noite, é preciso estar preparado para a apresentação. E é também uma escola de vida que ensina muito sobre convivência e desapego”.
A atriz informa que o circo-teatro apresentado pelo Tubinho atrai, em média, 600 pessoas por dia, de segunda a segunda, exceto às quartas-feiras, o dia de folga da companhia. Toda a arrecadação do Circo de Teatro Tubinho é proveniente da bilheteria, um fenômeno raro hoje em dia, conforme a pesquisadora da Unicamp.
“É preciso, portanto, agradar o público. Este verbo é muito usado pelos circenses e pode até soar como pejorativo, se você falar, por exemplo, com alguém do teatro tido como ‘oficial’. Mas aqui este verbo é usado sem nenhum problema. Você precisa garantir que o público vai sair daqui com a barriga doendo de tanto rir e vai voltar amanhã e vai trazer mais um monte de gente. Esta é a sobrevivência do circo-teatro! Portanto, o espetáculo não pode agradar mais ou menos, ele tem que agradar muito a plateia”.
Neste ponto, a estudiosa ressalta para o que ela chama de transformação das pessoas pelo poder do riso. “Um dos aspectos que mais me chamaram a atenção durante a pesquisa é que existe um verdadeiro ritual debaixo desta lona. Porque 600 pessoas se encontram e saem daqui transformadas pelo riso. Elas não saem da mesma maneira que entraram. Eu pude acompanhar isso durante toda a pesquisa. Tem gente que já veio mais de 100 vezes no Circo do Tubinho e que vai aonde o circo vai”, constata.
O estudo de Fernanda Jannuzzelli, apresentado junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do IA, foi orientado pelo professor Mário Alberto de Santana, que atua no Departamento de Artes Cênicas da Unidade. O trabalho obteve financiamento, na forma de bolsa à pesquisadora, da Fapesp. A autora da pesquisa explica que o propósito do seu trabalho foi estudar a manifestação do circo-teatro no Brasil ao longo do tempo, sob o viés do trabalho do ator. Fernanda Jannuzzelli investigou os elementos da encenação e interpretação do Pavilhão Arethuzza e do Circo de Teatro Tubinho. O objetivo em estudar as duas companhias, segundo a atriz, foi entender como era o circo-teatro na época do Pavilhão Arethuzza e como é, atualmente, com o Tubinho.
Para a estudiosa do IA somente a partir do início dos anos de 2000 o circo-teatro começou a ser pesquisado na academia, sobretudo com os estudos da historiadora Ermínia Silva e do professor Mario Fernando Bolognesi.
“O circo-teatro é uma manifestação que foi renegada tanto pelo circo, quanto pelo teatro tido como ‘oficial’. Esta manifestação foi excluída da história do teatro oficial brasileiro. Se você pegar os livros sobre a história do teatro no Brasil, das décadas de 1960, 1970 e 1980, não há nada sobre o circo-teatro. Além disso, muitos circenses tradicionais julgam que o circo-teatro gerou uma deturpação do espetáculo circense, sendo responsável por diminuir a atividade no Brasil. Portanto, o circo-teatro ficou num limbo, não sendo considerado nem teatro pelo teatro oficial, nem circo pelas companhias circenses”, avalia.
“Neste sentido uma das contribuições do meu estudo é que ele vem para afirmar que circo-teatro é teatro sim e que existe ainda hoje. Fala-se que não existe mais circo-teatro, mas se você vier ao Tubinho, vai ver um circo apresentando para 600 pessoas todas as noites. Houve uma diminuição no geral, mas ainda existem companhias levando a arte teatral pelo país e chegando a cidades e localidades aonde as companhias ‘oficiais’ não chegam”, completa. Com base na experiência viva do Circo de Teatro Tubinho, a autora escreve no último capítulo do seu estudo que o show não pode parar porque um dia sem peça é um dia sem bilheteria.
“Na peça Tubinho, o caçador de ídolos, Tubinho e seu escada dão as seguintes falas, que resumem bem o que quero dizer:
‘- As mulheres pintam a cara pela moda.
– E eu pela moeda.
– As mulheres pintam a cara por vaidade.
– E eu por necessidade.’
Dessa forma, esses artistas sobem ao palco todas as noites. E quem apresenta toda noite, aprende toda noite, experimenta toda noite, se põe em risco toda noite, amplia repertório toda noite, se aperfeiçoa toda noite”.
Pavilhão Arethuza | Circo de Teatro Tubinho |
O Circo-Teatro Pavilhão Arethuzza, com quase cem anos de existência, teve como fundadores os membros da família Neves. Com o passar dos anos, os membros das famílias Viana e Santoro foram agregados à companhia. A pesquisadora do IA informa que as origens do Pavilhão Arethuzza remontam ao século XIX, quando João Miguel de Faria fundou o Circo Glória do Brasil, entre 1865 e 1875. De acordo com ela, em 1891, Antônio das Neves, um português que vivia no Brasil desde sua infância, passou a trabalhar no Circo Glória do Brasil. Em pouco tempo, por ter se mostrado um excelente artista e administrador, com apenas dezoito anos, tornou-se sócio do comendador João Miguel de Farias, no agora chamado Circo Luso Brasileiro. Em 1895 casou-se com Benedicta Elvira e assumiu a direção total do circo, que ganhou de presente de casamento e que passou a se chamar Circo Colombo. “Em 1925, o Circo Colombo passou, então, a se chamar Circo-Teatro Arethuzza, nome da primogênita de Neves e Benedicta Elvira. A nomenclatura circo-teatro passou a ser usada, pois nessa época a pantomima já era um dos momentos mais aguardados do espetáculo”, explica Fernanda Jannuzzelli. | Já a trajetória do Circo de Teatro Tubinho teve início em 1918, com o casamento de Juvenor Ferreira Garcia (o palhaço Caolho) e Dolores Vilaça Garcia, mais conhecida por Lola. O caçula dos filhos de Juvenor e Lola, Juve Garcia, criou o palhaço Tubinho na encenação Tubinho um Trapalhão, levada no Circo de Teatro Tubinho até hoje. “O Tubinho tem mais de 100 peças no repertório e permanece meses instalado nas cidades. Em 2014, ficou oito meses em Sorocaba, por exemplo. O palhaço Tubinho é o centro da companhia. É um time que trabalha para o palhaço, para fazer ele crescer. Os integrantes deste time são chamados de escadas, que ‘erguem’ a piada que vai ser arrematada pelo palhaço. Cada um é responsável por um degrau nesta escada e quanto mais degraus conseguimos fazer, mais alto o palhaço vai. E com isso toda a companhia. Esta dimensão é muito clara para todos”, relata a atriz. De acordo com ela, a companhia conta com 40 integrantes, incluindo crianças e as famílias do fundador. Após convite de Zeca, Fernanda Jannuzzelli decidiu viver entre estes 40 integrantes. Ela comprou um ônibus antigo que serve de moradia e, desde então, passou a fazer parte do que chama de escola de teatro e de vida. “Para mim tem sido uma experiência incrível. É como se fosse uma segunda faculdade. Estou fazendo outro curso de artes cênicas, que só vai agregar e somar à formação que eu tive na Unicamp”, reconhece. |