Revelando o turista-fotógrafo
Com o Taj Mahal ao fundo, centenas de pessoas se transformam em fantasmas, ocupando os jardins que cercam o monumento indiano. A obra da artista suíça Corine Vionnet é emblemática
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Patrícia Lauretti/Jornal da Unicamp
Faz parte da série Photo Opportunities, iniciada em 2005, que sobrepõe fotografias tiradas por turistas. Fala de imagens feitas praticamente sob o mesmo ponto de vista. Repetem-se não somente os locais e objetos, mas os ângulos, as poses, as distâncias das tomadas. Um olhar construído ao longo da história da fotografia e do turismo e que é matéria-prima da tese “Picture ahead: a Kodak e a construção de um turista-fotógrafo”, de Lívia Afonso de Aquino. A pesquisa, orientada pela professora Iara Lis Schiavinatto, foi apresentada no Instituto de Artes (IA).
A pesquisadora aponta, por meio do trabalho de diversos artistas, um processo de acumulação e repetição das fotografias que torna a viagem uma estratégia para sua realização. “Nota-se um processo de reconhecimento e registro de tensões entre turismo e fotografia, bem como um exercício crítico acerca das imagens, principalmente aquelas feitas por amadores, ao deslocá-las no tempo e no espaço, produzindo nova percepção e subjetivação da experiência da viagem”, afirma Lívia.
Fotografia e turismo são compreendidos pela autora como um dispositivo por se estabelecerem como um jogo ou um programa a ser seguido. “Para o teórico Michel Foucault, a rede que se estabelece por meio dos discursos, rituais e organizações é o dispositivo. Nessa perspectiva, no contexto da tese, nota-se o processo de massificação da fotografia vinculado a uma indústria que, além de criar produtos fotográficos de fácil manuseio, torna-os acessíveis ao público leigo, tanto economicamente como pelo modo de usar”. Este processo tem o dedo da Kodak, primeira empresa a lançar câmeras pequenas e fáceis de usar, próprias para amadores. A Kodak ajudou, sobretudo, a constituir um sujeito que Lívia denominou de “turista-fotógrafo” e que surge a partir do entrelaçamento entre o turista e o fotógrafo amador, aquele que carrega uma câmera e está pronto para registrar a viagem em todos os detalhes, como forma de validá-la.
Para a autora, o turista-fotógrafo surge paulatinamente no contexto das viagens que aconteciam antes do crescimento do turismo como atividade econômica e cultural. “O turista já tinha imagens que ele comprava: postais, vistas estereoscópicas ou imagens fotográficas que circulavam de diferentes modos, mas era sempre o olhar do outro. Com a Kodak, ele passou a fazer suas próprias fotos, aprendendo um modo de olhar comercializado em escala global pela empresa”, assinala. Tratava-se de uma ação em massa da Kodak, apoiada nas estratégias de atuação e de publicidade nos cinco continentes. Lívia recuperou e analisou uma série de propagandas, anúncios, manuais, revistas, material direcionado aos lojistas e outras ações da empresa na oportuna aliança com o turismo. As propagandas de TV lançadas a partir dos anos 1960 também foram estudadas.
Durante os primeiros 40 anos da empresa, fundada em 1888, mais que criar um mercado, “a Kodak precisava, além de vender seus produtos, educar o público sobre a fotografia feita pelo próprio sujeito”. O resultado é que a empresa foi uma das maiores responsáveis na disseminação de uma cultura que ensinou as pessoas o quanto o registro em imagens de uma viagem realizado pelo próprio turista, seria importante, até crucial de acordo com a pesquisa.
“Logo que a fotografia foi inventada, viajantes e exploradores absorveram as técnicas como uma forma de mostrar o mundo. Mas para ir a campo, o fotógrafo tinha que carregar uma câmera muito grande e pesada, precisando levar, também, todo o laboratório para processar as imagens”, conta Lívia.
Uma das primeiras câmeras da Kodak, voltada para os amadores, era uma pequena caixa preta que trazia um sistema inovador: um rolo de filme para fotografar até 100 poses. Quando terminava de fotografar, o cliente enviava a câmera para a empresa que revelava, fazia as cópias e devolvia não apenas as fotografias, mas também o equipamento recarregado. A Kodak ensinava a fotografar em manuais que abordavam como tratar a luz, dirigir as pessoas, sugerindo como enquadrar.
Predadores do mundo
Algumas das publicidades antigas da Kodak trazem um fotógrafo cuja imagem é colada à do caçador: junto com suas armas e embornais, ele carrega uma câmera a tiracolo, acoplada à cartucheira. Lívia destaca que ele exibe suas presas para que os amigos fotografem, registra o troféu conquistado e utiliza um vocabulário com palavras como capturar, caçar, prova ou tiro para se referir à ação de fotografar. A caça era atividade comum realizada por homens, nas viagens e momentos de lazer. “A escritora Susan Sontag fala da troca simbólica entre a arma e a câmera. Penso que essa mudança implica uma condição de saber e poder do dispositivo; o turista-fotógrafo pode ser considerado um tipo de predador – um sujeito devorador de paisagem ou um consumidor da natureza, segundo define o historiador francês Marc Boyer – que tem como objetivo consumir lugares, vivências e vistas, e a fotografia se torna sua parceira constante”. O fundador da empresa, George Eastman, foi também um caçador e autor de diversos anúncios que aproximam o fotógrafo do caçador.
Histórias de viagem
O turista-fotógrafo também necessita mostrar suas imagens e, com o tempo, as exibições vão se transformando em rituais. De acordo com a pesquisadora, “desde os primeiros anúncios, a Kodak reconhece o apelo à memória com a fotografia, principalmente a partir do potencial de histórias que podem ser criadas – o relato das férias, o feriado de verão, a viagem de inverno: tudo é motivo para ser lembrando”. Para a Kodak, a fotografia seria capaz de conter o tempo e, sobretudo, de preservar a memória, que é falha e sujeita ao esquecimento, um instantâneo que possibilita rever em imagem a própria experiência.
A autora reitera que esse discurso mostra-se eficaz no contexto da cultura da memória, proposto pelo historiador alemão Andreas Huyssen, ou na lógica do mito da durabilidade, assinalado pelo sociólogo italiano Fausto Colombo. “Uma série de práticas políticas e culturais a fazer da lembrança uma garantia de continuidade diante das fragilidades vividas, como salienta Colombo”, afirma a pesquisadora. Com a estratégia da facilidade e do acesso difundidos pela Kodak, o álbum de viagem torna-se, portanto, objeto feito pela própria família, dando início a um modo de “roteirização e de visualidade das histórias” junto com as projeções de slides.
A tese analisa um período de cem anos, da fundação da Kodak até os anos 1980, quando ocorrem grandes mudanças na empresa, na fotografia e também no turismo. “Sentir-se turista em algum lugar é uma das práticas que a Kodak ajuda a engendrar. Viajar de carro, trem ou avião passa a ser símbolo de status, e a publicidade faz grandes investimentos em campanhas que geram demanda e desejo de consumo. O turista-fotógrafo é frequentemente representado nos anúncios de diversos produtos, sempre com a câmera pronta para fotografar o mundo que se descortina a sua frente. E a Kodak o mostra circulando nos mais diversos locais – praia, campo ou cidade; estações de trem, automóveis ou navios – e que, junto com sua bagagem, carrega uma câmera a tiracolo”. O discurso construído pela Kodak ao longo de sua história, contribuiu, segundo Lívia, para que esse sujeito vivenciasse a posse do mundo por meio das imagens. Também é peça fundamental para “a compreensão dos modos de subjetivação que produzem e enredam o turista-fotógrafo”.