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DOI-Codi sequestra e mata Manoel Fiel e diz que metalúrgico cometeu suicídio

em Especial
sexta-feira, 15 de janeiro de 2016
Manoel5 temporario

DOI-Codi sequestra e mata Manoel Fiel e diz que metalúrgico cometeu suicídio

Neste domingo (17), o assassinato do metalúrgico Manoel Fiel, na carceragem do DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo, completa 40 anos

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Camila Maciel/Agência Brasil

Não teve a mesma repercussão da morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida menos de três meses antes no mesmo local e em circunstância semelhante. Assim como Vladimir, Fiel foi morto sob tortura dos agentes da ditadura. A imprensa só soube do acontecido três dias depois, após a divulgação de uma nota lacônica pelo 2º Exército informando que o metalúrgico havia cometido suicídio.

Apesar da pouca repercussão, o assassinato do metalúrgico irritou o presidente Ernesto Geisel, que mandou demitir o comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, praticamente desmontando a máquina de tortura e morte que funcionava no DOI-Codi de São Paulo.Thereza Fiel ainda guarda recortes de jornais da época que publicam notícias da exoneração do comandante do 2º Exército.

A saída de Ednardo não acabou com as violações aos direitos humanos nos porões da ditadura, mas os torturadores passaram a ser mais “cuidadosos” e a linha dura militar perdeu força política dentro das Forças Armadas, o que levou, em 1977, à derrota do general Sylvio Frota, em suas pretensões de suceder Geisel na Presidência da República. O presidente escolhido por Geisel foi o general João Baptista Figueiredo.

Como fazia todos os dias, Manoel Fiel Filho acordou cedo, banhou-se, tomou café e foi para a Metal Arte, no bairro da Mooca, onde trabalhava como prensista. Era uma sexta-feira, 16 de janeiro de 1976, e, por volta do meio-dia, dois homens, sem qualquer ordem judicial, o retiram do trabalho, vão com ele até a sua residência, na Vila Guarani, revistam a casa em busca de exemplares do jornal Voz Operária, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), nada encontram e, sob os olhares apreensivos da mulher, Thereza Fiel, levam o metalúrgico para o Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). “Ele me deu um beijo na testa e foi embora. Eu falava: ‘Não leva ele, não”, disse Thereza, ao lembrar que o marido chegou a dizer que voltaria logo. “E ele nunca mais voltou”.

Após o sequestro de Fiel, Thereza reuniu toda a família, incluindo as duas filhas, e peregrinou por várias delegacias de polícia em busca de informações do companheiro. “Um conhecido da Polícia Civil disse que ele estava na Operação Bandeirantes (grupo criado em 1969 pelo Exército, com apoio de empresários para coordenar todas as operações dos órgãos de repressão) e que só se entrava lá com ordem do presidente da República”. Thereza soube da morte do marido no dia seguinte, sábado, 17 de janeiro de 1976. Por volta das 22h, um carro parou em frente à casa, “Desceu um fulano com um saco de lixo preto na mão. Ele disse: ‘Essa aqui é a roupa dele, e ele está morto'”.

Um marido trabalhador e amoroso. É assim que Thereza, hoje com 83 anos, relembra Manoel. “Trabalhava na firma e ainda me ajudava em casa. Era bom demais. Atencioso, me ajudava bastante. Adorava as filhas. Marido igual àquele não se acha mais”, disse, emocionada, durante a entrevista concedida em Bragança Paulista, a 90 km da capital. Thereza relatou, logo no início da conversa com a reportagem, uma coincidência. “Hoje [7 de janeiro] era aniversário dele. São lembranças, né? A gente fazia um bolo. Comemorava em casa mesmo”. As recordações sobre o marido pareciam estar mais vivas naquela manhã.

Manoel, natural Quebrangulo, Alagoas, terra natal do escritor Graciliano Ramos, festejava os 49 anos. “Eu lembro que fiz um pavê. Ele adorou. Ele não gostava muito de comemorar, mas gostava de estar com família”, disse a filha Márcia. A outra filha, Aparecida Fiel, de 60 anos, também lembrou o zelo do pai em comprar frutas frescas para a filha mais velha, que estava grávida. “Ele não conheceu nenhum neto”.

Manoel saiu de Quebrangulo em 1950 em busca de uma vida melhor em São Paulo. Trabalhou como padeiro e cobrador de ônibus antes de se tornar metalúrgico, exercendo a atividade de prensista na mesma empresa por 19 anos. Embora a família não soubesse, ele era responsável pela difusão do jornal Voz Operária, do PCB, e pela organização do partido entre os operários das fábricas do bairro da Mooca, conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade. “Meu marido morreu e salvou a turma que estava lá [no DOI-Codi]”, disse Thereza, ressaltando que o episódio provocou mudanças no tratamento dado aos presos políticos da época.Manoel4 temporario

A morte de Manoel Fiel Filho só foi tornada pública dias depois, por meio de nota: “O Comando do 2º Exército lamenta informar que foi encontrado morto, às 13h do dia 17 do corrente, sábado, em um dos xadrezes do DOI-Codi/2º Exército, o Sr. Manoel Fiel Filho. Para apurar o ocorrido, mandou instaurar Inquérito Policial-Militar (IPM), tendo sido nomeado o coronel de Infantaria Murilo Fernando Alexander, chefe do Estado-Maior da 2ª Divisão de Exército”.

Manoel2temporarioO IPM foi concluído no prazo previsto de 30 dias. O procurador militar Darcy de Araújo Rebello, em 28 de abril de 1976, pediu o arquivamento do processo. “As provas apuradas são suficientes e robustas para nos convencer da hipótese do suicídio de Manoel Fiel Filho, que estava sendo submetido a investigações por crime contra a segurança nacional”, alegou o procurador. Foi a mesma conclusão a que chegou o encarregado do Inquérito Policial Militar, o coronel Murilo Fernando Alexander.

O citado crime contra a segurança nacional nada mais era do que uma acusação de receber exemplares do jornal Voz Operária, do PCB. Uma acusação feita com base em informação conseguida sob tortura de outro preso político. O IPM, apesar das evidências de tortura e de assassinato, concluiu que Manoel Fiel Filho cometeu suicídio. Mais adiante, o documento diz “que não se pode chegar a nenhuma outra conclusão, senão aquela de suicídio, na sua expressão mais simples”. Os responsáveis pelo IPM, em nenhum momento, se interessaram em investigar uma série de evidências de que o metalúrgico foi torturado e assassinado.