Pesquisa busca resgatar espaço memorial do teatro paulistano
O teatro é, por definição, uma forma de arte que se manifesta no presente, mantendo-se no tempo enquanto acontece no palco
Teatro de São José, 1876. Acervo da Divisão de Iconografia e Museus / DPH / SMC. |
Samuel Antenor/Agência FAPESP
Para conservar seu registro histórico, sua memória, o teatro depende, primordialmente, da ajuda de outras plataformas, que permanecem além da cena. São textos, livros, catálogos, registros fílmicos ou mesmo espaços cênicos, o que inclui o próprio edifício do teatro.
Como forma de resgatar essa história, assim como a atmosfera dos palcos da cidade de São Paulo entre meados do século 19 e o início do século 20 e também de buscar resquícios dos edifícios onde as peças eram encenadas, uma pesquisa realizada no Laboratório de Informação e Memória do Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP levantou documentos sobre a cena paulistana entre os anos de 1850 e 1930, do período imperial à Primeira República. Nesse período, vários teatros foram construídos na cidade em decorrência do crescimento da população, que tinha no teatro uma importante forma de lazer.
Liderada por Elizabeth Ferreira Cardoso Ribeiro Azevedo, coordenadora do Centro de Documentação, a pesquisa “Inventário da cena paulistana: antigos edifícios teatrais (de meados do século XIX ao fim da Primeira República) – um inédito levantamento das edificações teatrais existentes na cidade naquele período–”, foi apoiada pela FAPESP e pelo Condephaat. Os dados reunidos refletem um pouco do perfil socioeconômico dos habitantes de São Paulo, as influências artístico-culturais de sua gente em uma cidade em transformação.
Dinâmica teatral
Em busca de informações sobre o teatro em São Paulo, e seus diferentes espaços, Azevedo procurou identificar o momento em que o teatro deixou de ser exclusivo das elites para chegar a outros grupos sociais, como imigrantes, que começavam a ter mais relevância na cidade que crescia economicamente. Por isso, a pesquisa se deteve na análise da dinâmica de criação dos teatros e de sua inclusão no cotidiano dos paulistanos. Do final do século 18 até meados do século 19 só havia o Teatro São Paulo, também conhecido como Casa da Ópera, que ficava no Pátio do Colégio. Por volta de 1860, foi erguido o Teatro São José, um teatro público construído na área que hoje corresponde aos fundos da Catedral da Sé”, diz.
Esses “novos” teatros, contudo, eram considerados precários por banqueiros e empresários paulistas, que construíram e inauguraram, em 1873, o Teatro Provisório, na Rua 3 de Dezembro. Não muito distante do Largo de São Francisco, onde funcionava a Faculdade de Direito, o teatro foi inaugurado com a apresentação de uma montagem feita por estudantes da Faculdade, e acabou por ganhar destaque cultural e artístico. Ele funcionou como teatro até 1900, sob outros nomes, como Teatro Ginásio Dramático e Teatro Apolo. “Isso nos dá alguma medida de qual era a origem dos capitais investidos no teatro, ou seja, além da estética e da cultura, eram também investimento financeiro. É nesse período, e com essa mentalidade, que surgem vários teatros em São Paulo”.
Com o material encontrado nos vários arquivos pesquisados, Azevedo passou a investigar se alguns edifícios, inclusive aqueles já identificados em outras pesquisas, permaneciam de pé, pois boa parte do patrimônio arquitetônico de São Paulo não sobreviveu ao crescimento da cidade. A pesquisa nesses arquivos revelou algumas novidades para a arquitetura paulistana. Por exemplo, investigando sobre o Teatro Boa Vista, que ficava no Centro da cidade, na esquina da Rua Boa Vista com a Ladeira Porto Geral, Azevedo verificou que os memoriais descritivos da construção mencionavam uma estrutura em concreto armado. Isso mostra que essa modalidade de construção já aparecia na arquitetura paulistana em 1916, e não em 1920, como se sabia até então.
“No final de século 19 há um aumento considerável no número de teatros em São Paulo. Apenas nas regiões centrais eram 53 na Sé, 35 na República e 28 no Brás. Os documentos também revelam que grandes companhias dramáticas e líricas se apresentaram na cidade, mas a maior parte dos teatros era considerada área de ‘baixa moralidade’”, diz. Antes regiões desmembradas da colina histórica da cidade, os bairros centrais também abrigavam os chamados Salões, onde se apresentavam os artistas amadores.
Segundo a pesquisadora, as apresentações de espetáculos para um número expressivo de pessoas faziam parte do lazer cotidiano da cidade. No entanto, além de entreter, o teatro cumpria um papel social. “No século 19, era predominante o discurso de que o teatro deveria ser uma escola de moral e de bons costumes, na dramaturgia e nas encenações. O teatro que se desviava da arte era considerado mero entretenimento.” Em São Paulo, com uma dinâmica teatral mais acanhada do que a do Rio de Janeiro, o teatro também era visto como arte a serviço do aprimoramento moral da sociedade.
Contudo, até a década de 1920, Azevedo afirma que o teatro de entretenimento era tratado como assunto de polícia: os jornais publicavam os relatórios que os distritos policiais recebiam dos agentes encarregados de supervisionar os espetáculos, avisando em quais teatros havia acontecido algum incidente. “Esses documentos mostram que havia bengaladas, tapas e até facadas. A plateia era pouco comportada, sobretudo em teatros mais populares. Por isso, os registros da época estão ligados a essas questões”, observa.
Concorrência desleal
Mesmo ainda mais modestos em quantidade e em estilo do que os teatros do Rio de Janeiro, então capital do país, há nos teatros paulistanos uma diferença em relação ao panorama até então existente na própria cidade, que teve ampliado seu espaço cênico com os espetáculos amadores nos Salões, onde as apresentações eram bastante diversificadas. Nos anos seguintes, boa parte desses teatros e salões vai se transformar em salas de cinema.
Ainda que o teatro fosse a atividade de massa por excelência, o mero entretenimento deveria ser também um investimento rentável. Por isso, a partir da década de 1920, a fim de manter seus espaços, os teatros vão se transformando em cineteatros, como forma de enfrentar a concorrência com os filmes. A pesquisa nos documentos dos diferentes arquivos revelou que no início do século passado o mais famoso dos cineteatros paulistanos era o Santana, considerado o melhor e mais diferenciado da cidade, na Rua Boa Vista, onde hoje está o Viaduto Boa Vista.
Construído pelo conde Álvares Penteado no mesmo local onde antes funcionara o Teatro Provisório, o Santana era um teatro de variedades, com cinema, luta livre, espetáculos de mágica e conferências. Um segundo teatro Santana foi construído também pela família do conde na Rua 24 de maio, próximo à Praça da República.
Formada por industriais, a família Penteado é exemplo de como as elites investiam e davam destaque ao teatro. “Eles mantinham inclusive o Casino Penteado, um teatro dentro de uma de suas fábricas, o que não era de todo incomum, pois as vilas operárias que se erguiam junto às fábricas tinham espaço e público. Um resquício disso perdura na Vila Maria Zélia, no bairro do Belém, onde atualmente uma companhia de teatro, o Grupo XIX, ocupa a antiga vila operária”.
Com o passar do tempo, o cinema ganha ainda mais espaço. Alguns teatros passam a exibir exclusivamente películas da Europa e dos Estados Unidos. É o caso do Teatro São Pedro, na Barra Funda, ainda hoje em atividade com espetáculos teatrais ou de música, mas que durante muito tempo funcionou exclusivamente como cinema. “Esses espaços precisavam se sustentar, ser rentáveis, lucrativos. Por isso, naquele período, eles apresentavam atividades muito diversificadas. Os filmes entram no teatro aos poucos, inserindo-se na programação. Isso ocasiona um período de falta de teatros em São Paulo, tanto para grandes como para pequenas companhias. Possivelmente todos os teatros de São Paulo passaram por isso”, ressalta.
A chegada dos filmes, conforme a pesquisa, trouxe também outra dinâmica para esses espaços. Mais acessível, o cinema não fazia concorrência direta aos espetáculos mais elitistas, como as óperas, mas sim ao chamado teatro popular, modificando não apenas o espaço do teatro, mas também sua estética. Com uma linguagem ainda próxima à dos palcos, o cinema é incorporado pelo teatro de variedades, que passa a exibir filmes como uma de suas atrações, ao lado de esquetes cômicos, mágicos, cantores e acrobatas.
“Com isso, o teatro de revista, que antes levava duas a três horas de apresentação, passa a ser feito em sessões mais curtas, em duas ou até três sessões por noite e com ingressos mais baratos.” A modificação era estética, mas motivada por questões econômicas, pois as companhias dependiam da renda da bilheteria para sobreviver e, para isso, havia um público a ser disputado. Enquanto os teatros públicos permaneceram como tal, aqueles ligados à iniciativa privada foram migrando, aos poucos, para a atividade de exibição de filmes.
Arquitetura eclética
O uso de ferramentas da internet possibilitou que a pesquisa localizasse 172 edifícios teatrais, dentre os quais há pouquíssimos remanescentes. “Na região da Praça da República havia teatros mais estruturados, como o Casino Antarctica, no Vale do Anhangabaú, enquanto na Rua Florêncio de Abreu conseguimos identificar o edifício que abrigou o Salão Itália Fausta, onde eram encenados vários espetáculos amadores”, conta.
Entre os teatros com arquitetura significativa figuram o Teatro Municipal e o Teatro São Pedro. Outros sobreviveram como edifício, mas com outras funções: transformaram-se em lojas, igrejas e estacionamentos. A maioria, porém, foi demolida, caso do Teatro Polytheama, na região central, colocado abaixo após um incêndio. Na região do Brás, os documentos revelaram o Teatro Braz Polytheama e o Teatro Popular, do Teatro Colombo, com 2 mil lugares. Havia ainda o Teatro Royal, em Santa Cecília, e pequenos teatros, como o do Casino Penteado, que ficava na margem direita do rio Tamanduateí.
“Arquitetonicamente, eles vão desde pequenos salões até teatros para 2 mil pessoas, como o Santa Helena, que sobreviveu com 1.300 lugares até 1970, e desapareceu com a reforma e ampliação da Praça da Sé. O Teatro Municipal, com 1.600 lugares, permanece até hoje, mas o Teatro São José, uma das primeiras construções neoclássicas de São Paulo, que se destacava em relação a outras construções da cidade, não existe mais”, diz a pesquisadora. Desse ponto de vista arquitetônico, alguns edifícios teatrais em São Paulo seguiam o estilo eclético. “Algumas vezes as construções apresentavam algum requinte, com materiais importados da Europa, caso do segundo Teatro São José, que ficava onde atualmente funciona o Shopping Light, no Viaduto do Chá, mas essa não era a regra.”
Mesmo a Casa da Ópera, o mais antigo entre os teatros paulistanos, não se destacava do restante das edificações de sua época e, com exceção do Teatro Polytheama, que era redondo, os demais tinham a prevalência do palco italiano. Nas primeiras décadas do século 20, o teatro entra em baixa, e o cinema passa a ficar em voga. O teatro perde espaço como negócio, mas mantém, de alguma forma, seu prestígio cultural. É a partir desse prestígio que a sociedade paulistana passa a cobrar uma maior participação do poder público.
Exemplo disso é a criação nos anos 1930, pelo escritor Mário de Andrade, do Departamento de Cultura da Municipalidade Paulistana, que mais tarde se tornaria a Secretaria Municipal da Cultura.
Acervo na internet
Foi criado o site Inventário da Cena Paulistana, para tornar acessível o conteúdo do estudo. Nele, atualmente, há um mapa antigo, com imagens de época, onde se pode inserir o endereço atualizado em um mecanismo de busca, permitindo localizar o antigo teatro. Há ainda uma área para colaboração, para que as pessoas possam enviar informações sobre esses e outros edifícios. As informações recebidas são checadas e disponibilizadas junto aos demais dados da pesquisa. O site pode ser acessado no endereço (www2.eca.usp.br/cdt-inventario/).