Patrimônio histórico nas mãos das Geociências
Muita pedra por aí já se tornou célebre após uma pitada de inspiração, arte e arquitetura. “Pedaços de montanha” que antes repousavam discretos sob a superfície em que caminhamos cruzam a barreira de interesse dos geólogos e são eternizados nas paredes de prédios e nos corpos de esculturas. Os cientistas da terra, porém, precisam ficar “de olho” na conservação dessas rochas
O revestimento pétreo de prédios como o Teatro Municipal de São Paulo não têm uma vida das mais fáceis. |
Bruno Vaiano/Agência USP de Notícias
O revestimento pétreo de prédios como o Teatro Municipal de São Paulo e a Catedral da Sé, ambos no coração da capital paulista, não têm uma vida das mais fáceis. Urina, pichações, poluição e o imprevisível clima da terra da garoa são apenas um resumo dos desafios diários dessas pedras, que também sofrem com suas características intrínsecas.
Apoio à Pesquisa em Patrimônio Geológico e Geoturismo (GeoHereditas) da USP, orientados pela professora Eliane Aparecida Del Lama, se dedicam a avaliar a situação das rochas das esculturas e edifícios mais famosos de São Paulo através de métodos não destrutivos. Ou seja: vale tudo, menos tirar pedaço.
Elaine aborda o assunto tanto na graduação quanto na pós. “Os alunos gostam. Nos primeiros anos era algo novo, mas depois o interesse foi surgindo e aumentando, tanto para o patrimônio construído como para o natural”, conta Eliane sobre a procura pelo tema. “Hoje temos uma linha de pesquisa na pós-graduação no Programa Mineralogia e Petrologia, e ela tem atraído muitos alunos”.
A pesquisadora do Instituto de Geociências (IGc) explica que as rochas em si, velhas conhecidas dos geólogos, não são um grande desafio. O problema é a quantidade: “O que muda muito é a amostragem. Geólogo costuma coletar muita amostra para fazer as análises químicas, no caso do patrimônio a coleta é a menor possível. E quando há materiais mais delicados, o cuidado é maior”.
Monumento à Ramos de Azevedo
Danielle Grossi, uma de suas orientandas, não precisou ir longe para encontrar seu objeto de análise. O monumento a Ramos de Azevedo, localizado em uma rotatória próxima à Escola Politécnica (EP), foi alvo de seu mestrado. “Ele foi transportado para dois locais diferentes. Alguns trabalhos mostram a grande degradação que sofre um monumento, principalmente um deste tamanho, quando transportado”, conta Danielle. A obra de Galileo Emendabili, terminada em 1934, ficava na Av. Tiradentes até ser levada, por causa das obras da Linha 1 – Azul do Metrô, para a Cidade Universitária.
A mudança, porém, não gerou muitos problemas. O monumento está em boas condições de conservação, mas sofre com a sujeira e está um pouco amarelado, o que pode ser causado pela degradação da biotita, um dos minerais que entram em sua composição.
Catedral da Sé
Diego Machado, outro orientando de Eliane, verificou as rochas da Catedral da Sé, templo de apenas 61 anos de idade que já encarou uma restauração na passagem para o século 21. Para resolver o problema de analisar o material sem extrair amostras, ele confia na colaboração de outros campos do conhecimento. “Os testes, com contribuições da física, da geofísica, da química e da biologia, são tão confiáveis quanto os outros mais invasivos”, comenta.
No arsenal de Diego há equipamentos e táticas com nomes compridos, mas explicações simples, como o espectrofotômetro. A máquina ‘enxerga’ cores com precisão e parâmetro, compensando a subjetividade do olho humano. Através da comparação das cores de uma de rocha intacta com as de uma rocha exposta ao clima e às ruas, é possível verificar “se o material sofreu alguma limpeza excessiva, se está muito sujo, engordurado ou manchado por fatores externos, e se os próprios minerais estão se alterando por fatores internos”, explica o pesquisador.
Outros são velhos conhecidos nossos, como o ultrassom. É possível revelar a situação no interior da rocha através do tempo que ondas ultrassônicas, inaudíveis para um ser humano, levam para retornar ao aparelho que as emitiu. “A onda será mais rápida quanto mais coeso for o material, e mais lenta quanto mais fragilizado ele estiver”, descreve Diego.
Sua análise verificou que a Catedral, após o restauro ocorrido entre 1999 e 2002, está bem, mesmo apesar de sua constante exposição à chuva ácida, tinta, fumaça e outras surpresas paulistanas. O problema é conservá-la dessa forma: “ainda não há uma curadoria que faça uma manutenção preventiva, de forma a sempre intervir progressivamente para evitar grandes restauros”, explica o pesquisador. “É o caso, por exemplo, das recentes pichações feministas, tiradas de forma imprópria”.
No início de novembro, em manifestação de rua contra o projeto de lei 5069, de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, as paredes e portas da Catedral foram cobertas com pichações favoráveis ao aborto e a outras pautas feministas. A remoção ocorreu sem método científico, pondo em risco a fachada do edifício histórico. O problema, para os pesquisadores, é generalizado: “mesmo se a prefeitura limpa um monumento, no dia seguinte está pichado”, afirma Eliane. “O que poderia melhorar a situação é a educação patrimonial. Só se preserva o que se conhece”.
A manutenção constante evita que o desgaste acumulado justifique uma obra de restauro, muito mais cara e invasiva. Mas ainda não há políticas públicas nem consciência para lidar com o assunto. “Infelizmente o Brasil investe pouco em prevenção e seus bens tombados acabam por sucumbir a ação do tempo”, afirma Diego. A preservação de patrimônio através de técnicas da geologia é um fenômeno recente no Brasil.
“Estes estudos já são realizados na Europa e Estados Unidos há algum tempo”, conta Danielle. “Como temos um número considerável de patrimônios em pedra, estão sendo feitas intervenções, muitas vezes sem estudos”. Ela, atualmente, pesquisa o Teatro Municipal em seu doutorado. E o GeoHereditas continua sua luta contra a degradação da história.