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Historiador desconstrói mitos sobre Teatro Municipal de São Paulo

em Especial
sexta-feira, 27 de outubro de 2017
Francisco Pereira de Figueiredo

Historiador desconstrói mitos sobre Teatro Municipal de São Paulo

Em termos de restauração e conservação de patrimônios históricos, o Brasil não é exatamente reconhecido por ter apreço pela preservação de suas construções.

Francisco Pereira de Figueiredo

Aspecto atual da sala, em vermelho, após o último restauro.

Camila Pissolito/Jornal da Unicamp

Os motivos vão desde a especulação imobiliária até o descaso de autoridades em relação aos monumentos. A despeito disso, o Teatro Municipal de São Paulo chega aos 106 anos como um marco arquitetônico nacional. Em sua tese de doutorado “Parnaso paulistano: história, arquitetura e decoração do Teatro Municipal de São Paulo”, o historiador Richard Santiago Costa esmiúça cada detalhe que compõe os 3 mil m² da construção.

Apesar de o monumento estar atrelado à alta sociedade no imaginário popular, Richard afirma que o teatro não só nasceu em um contexto de crise, como também chegou assim ao seu centenário. “O Teatro sempre esteve em uma posição fragilizada. Sua construção quase foi impedida pela crise econômica do encilhamento. Depois disso, houve perda substancial de público para o cinema, e hoje, ao menor sinal de instabilidade financeira, a primeira área a ter os investimentos cortados é a cultura. É possível afirmar que o Municipal nunca saiu da crise”.

Para além dos obstáculos políticos e financeiros de sua construção, o Municipal ainda sobreviveu à verticalização do centro da cidade de São Paulo, onde diversos outros edifícios históricos foram demolidos e substituídos por prédios e construções de arquitetura moderna. Richard explica que o entorno do Teatro marca as fases de ocupação do centro do ponto de vista estilístico. “Tratava-se de uma região agrícola onde as pessoas praticavam agricultura de subsistência. Na época, ele foi o principal prédio da cidade e também o grande impulsionador da urbanização daquela região”.

Este fato pode ser confirmado por uma curiosidade: na noite de sua inauguração foi registrado o primeiro engarrafamento da cidade de São Paulo. Na ocasião, 20 mil pessoas aguardavam do lado de fora para ver a iluminação do Teatro. Se o exterior do edifício podia ser admirado por todos os segmentos da população, o acesso ao seu interior denunciava o caráter segregador do evento, no qual apenas representantes da elite política e/ou econômica, puderam de fato conhecer o espaço interno da construção.

O historiador Richard Santiago Costa, autor da tese: “É possível afirmar que o Municipal nunca saiu da crise”.Um dos mitos que a tese derruba é o de que São Paulo não possuía estabelecimento apto a receber companhias artísticas internacionais. “Apesar de os outros teatros não serem tão modernos e não terem uma boa estrutura como o Municipal, as companhias chegavam ao Brasil. O fato é que ele foi construído para ser um símbolo político, que cumprisse as funções não só artísticas, como sociais e políticas. Não havia uma casa de óperas na cidade”.

Em seu livro Le Théâtre (1871), o arquiteto Charles Garnier estabelece uma série de postulados sobre a construção de teatros cosmopolitas. Nele, o autor cria uma espécie de manual com recomendações arquitetônicas. Sua obra-prima pode ser vista na Ópera Garnier, localizada na capital francesa. Richard pontua que ela é um modelo de excelência que influencia teatros ao redor do mundo, e isso dá origem a outro mito acerca do teatro paulistano.

“Muito se fala sobre o Municipal ser uma cópia da casa de ópera parisiense. O que acontece é que ele segue o padrão apresentado por Garnier, como a divisão de compartimentos de acordo com as suas funções visíveis exteriormente”. Mas, apesar de linguagens arquitetônicas semelhantes, o modo como o teatro paulistano foi construído tem suas particularidades e difere-se da Ópera Garnier e também do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo.

Características regionais também o diferem da capital francesa. Os mármores provenientes da Europa harmonizam-se com pedrarias da região de Itaquera e de Sorocaba, sendo uma vitrine da riqueza mineral brasileira. O conjunto de pinturas do salão nobre foi feito por Oscar Pereira da Silva. Segundo Richard, “trata-se de um conjunto de pinturas monumental, que muitas pessoas não conhecem e com uma qualidade absurda, com status de cartão postal. Esses elementos do Teatro mostram ao mundo como nosso país é rico”.

Richard pontua que, apesar das diversas crises econômicas e políticas que assolaram o país e a indústria cultural através dos anos, o Teatro valeu-se de bons momentos históricos para se restaurar. Passou por três grandes reformas na sua história, sendo a última por ocasião do seu centenário, no fim dos anos 2000. Se exteriormente o teatro foi pouquíssimo modificado, seu interior passou por mudanças substanciais.

Salão Nobre, com as pinturas no teto de Oscar Pereira da Silva, os mármores de Itupararanga nas paredes e vitrais vindos da Alemanha.A primeira restauração, nos anos 1950, foi a mais importante neste sentido porque suprimiu o restaurante original e o transformou em um bloco administrativo. A sala de espetáculos e a caixa cênica também foram completamente modificadas. “A ideia era de que, no quarto centenário da cidade [1954], ele voltasse a ser um dos teatros mais modernos do mundo, como se dizia na sua inauguração”, ressalta Costa. “Então, uma comissão liderada pelo arquiteto Tito Pistorezzi fez alguns estudos para saber como modernizar a sala de espetáculos, mantendo o máximo possível de suas características originais”.

Nesta época, o monumento ainda não era tombado por nenhum órgão de preservação do patrimônio, o que causou certa polêmica: de um lado, havia a corrente contrária à ação, como o ex-prefeito Prestes Maia, que dizia que o teatro havia sido destruído interiormente. De outro, os defensores, afirmando que o teatro havia sido preservado e que, além disso, estava modernizado.

Ainda nesta reforma, o Liceu de Artes e Ofícios escolheu a cor grená para os tecidos do estofamento e da cortina. Esta cor, segundo Charles Garnier, é capaz de ressaltar o brilho e o aspecto saudável dos seus espectadores, principalmente das mulheres.

Na segunda restauração, nos anos 80, a mídia noticiou que um dos arquitetos responsáveis sonhou que, em uma área do camarote de proscênio, haveria uma porção intacta e que conteria a coloração original da sala de 1911. Quando foi até o local, ele encontrou 3 m² intocáveis pela reforma de 1950 na cor verde, o que decidiu a coloração posterior da sala, desde as paredes, até os estofados e cortinas. Somente na última reforma, nos anos 2000, a decoração é modificada e a cor retomada como nas recomendações de Garnier.

Antonio ScarpinettiPolêmicas à parte, as três restaurações foram bem-sucedidas. “Foram mantidos os gradis originalmente da Alemanha, o que considero algo positivo e um cuidado para não deixar a sala irreconhecível”. Exteriormente, o Teatro segue imponente, com o diferencial de que agora ele é aberto ao público, em visitações guiadas gratuitas. “É louvável o fato de chegarmos ao século XXI com o prédio em pé e bem preservado. O Municipal é um bem do povo, a população tem a responsabilidade não apenas de protegê-lo, mas também de ocupá-lo e dele se beneficiar”.