Imigrantes: as brechas para o acolhimento
O Brasil abriga 1.847.274 imigrantes regulares, segundo estatísticas da Polícia Federal atualizadas em março de 2015. Conforme a classificação adotada pela instituição, esse total engloba 1.189.947 “permanentes”; 595.800 “temporários”; 45.404 “provisórios”; 11.230 “fronteiriços”; 4.842 “refugiados”; e 51 “asilados”
Nova lei, recentemente aprovada no Senado, ainda deverá tramitar na |
José Tadeu Arantes/Agência FAPESP
É um grande número, mas que constitui apenas uma pequena parcela do conjunto global de imigrantes. Este alcançou o patamar dos 250 milhões em 2013. Os imigrantes compõem, no Brasil, somente 0,9% da população. Em destinos tradicionais da imigração, como Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Espanha e França, o percentual é da ordem de dois dígitos. Porém o número de imigrantes no Brasil está aumentando de forma consistente. E tende a aumentar ainda mais nos próximos anos.
Três fatores contribuem para isso: o declínio da taxa de crescimento populacional brasileira (que, em conjunturas de expansão econômica, favorece a recepção de trabalhadores estrangeiros); as dificuldades econômicas e crescentes restrições à entrada de estrangeiros nos países desenvolvidos (que está reconfigurando o fluxo migratório em escala mundial, deslocando o eixo da direção Sul-Norte para a direção Sul-Sul); e a crescente presença de empresas brasileiras em outros países (que, no imaginário das populações locais, apresenta o Brasil como um horizonte de possibilidades).
“Apesar da oposição de um segmento da sociedade e da mídia, os imigrantes estão chegando, sendo contratados e trazendo ao país um conhecimento que o brasileiro muitas vezes ainda não possui”, disse a socióloga Patricia Tavares de Freitas, pós-doutoranda do Centro de Estudos da Metrópole, vinculado à USP. Freitas doutorou-se com a pesquisa “Migração, trabalho e família: os trabalhadores bolivianos do setor de confecção na cidade de São Paulo”.
E, no pós-doutoramento, dedica-se ao tema “A governança das migrações internacionais e os seus impactos na experiência social dos migrantes – um estudo comparativo dos contextos nacionais e locais de São Paulo, no Brasil e, Buenos Aires, na Argentina”, com bolsa da FAPESP.
Como exemplo do acréscimo trazido pelos estrangeiros ao repertório de conhecimentos dos profissionais do país, Freitas cita o caso de trabalhadores senegaleses que estão sendo contratados por empresas exportadoras de carne do Rio Grande do Sul por dominarem o procedimento halal de manuseio da carne, prescrito pela religião islâmica.
“Trata-se de um importante nicho econômico devido ao fato de o Brasil ser grande exportador de carne para os países muçulmanos do Oriente Médio e da África”. Mas o foco da atual pesquisa de Freitas é a dimensão política, mais especificamente as formas de relacionamento dos imigrantes com os governos locais – municipal e estadual – de São Paulo, que ainda é o principal polo de atração de estrangeiros no Brasil.
“Existe uma nova lei, recentemente aprovada no Senado, que ainda deverá tramitar na Câmara. Porém, até o presente, a situação dos imigrantes foi regulada pelo Estatuto do Estrangeiro, promulgado durante a ditadura. Nos termos dessa legislação, baseada na ‘doutrina da segurança nacional’ e na proteção do trabalhador nacional, foram limitados os direitos civis, sociais e políticos dos imigrantes, principalmente dos indocumentados, por meio de uma gestão baseada na Polícia Federal e no Conselho Nacional de Imigração, vinculado ao Ministério do Trabalho”, afirmou. “Diante disso, os imigrantes e as organizações civis que os defendem começaram a buscar, na esfera local, brechas que possibilitassem um alargamento dos direitos – o que, de fato, ocorreu.”
Educação e saúde
Pesquisando nos arquivos do Centro de Estudos Migratórios, da Missão Paz, mantida pela Arquidiocese de São Paulo, que é a principal instituição de acolhida dos novos imigrantes na cidade, Freitas verificou que, no período compreendido entre a redemocratização do país, em meados dos anos 1980, e o fim da década de 2010, ocorreram quatro movimentos principais em prol dos novos imigrantes: por direito à educação, à saúde, ao trabalho digno e à representação e participação política.
“No começo dos anos 1990, houve uma resolução da Secretaria de Educação do Estado impedindo que as escolas acolhessem matrículas de filhos de imigrantes indocumentados. Nesse momento, por iniciativa de Dom Paulo Evaristo Arns, então cardeal-arcebispo de São Paulo, ocorreu uma mobilização da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese, para que a resolução fosse revogada. Isso ocorreu cinco anos mais tarde, durante a gestão de Belisário dos Santos Jr. na Secretaria de Justiça do Estado, durante o governo de Mário Covas”, disse.
Já o movimento pelo direito à saúde se deu em outro contexto, no início dos anos 2000. “Quando Marta Suplicy assumiu a Prefeitura, houve o estabelecimento das subprefeituras e a descentralização da área de Saúde, com a implementação do Programa Saúde da Família (PSF), que prevê a realização de visitas domiciliares para a inclusão das populações vulneráveis no sistema de saúde”, disse Freitas.
“Nesse processo, ocorreu o contato dos técnicos do PSF com os novos imigrantes latino-americanos, trabalhadores nas oficinas de costura. E, posteriormente, a partir de uma articulação entre os técnicos do PSF da subprefeitura da Mooca e os representantes da Pastoral do Migrante, foi criada uma lei abrindo a possibilidade de contratação de imigrantes para fazerem parte das equipes do PSF”, disse.
Cidadania local
Fatos desse tipo são articulados teoricamente por meio de dois conceitos sociológicos: o de “cidadania local” e o de “domínio de agência”. “A ideia do ‘domínio de agência’ é a de que existem interações entre a sociedade e o Estado que criam, neste último, dispositivos facilitadores do diálogo em relação a sujeitos de direitos específicos – no caso em questão, os novos imigrantes. Por meio dessas interações, foram e continuam sendo criadas capacidades estatais para a acolhida desse grupo social”, explicou Freitas.
Diante de uma legislação nacional restritiva, as organizações civis buscaram brechas para ampliar, de fato, os direitos dos imigrantes. E isso mudou, em certa medida, o perfil do Brasil no tocante à questão.
De um país que se fechou à imigração a partir dos anos 1930, quando o governo Vargas estabeleceu formas de recrutamento internas e políticas de proteção do trabalhador nacional, o Brasil evoluiu para um contexto que, a despeito de suas ambiguidades, é muito mais receptivo e inclusivo. Fatores conjunturais contribuíram decisivamente para que isso acontecesse.
“Nos anos 2000, foi estabelecido, no Mercosul, o Acordo de Residência, que é um estatuto extremamente avançado, assegurando direitos, inclusive culturais, aos imigrantes e suas famílias. Em função dele, ocorreram mudanças nas legislações nacionais de vários países da América Latina, especialmente da Argentina e do Uruguai, que também tinham leis do tempo de suas respectivas ditaduras. Embora uma mudança desse porte não tenha ocorrido no Brasil, o Acordo de Residência deu aos imigrantes latino-americanos um novo status, que lhes permitiu desfrutar de direitos como, por exemplo, dois anos de residência, renováveis”, disse a pesquisadora.
Paralelamente, abriram-se outras brechas: o Visto Humanitário, que beneficia atualmente os imigrantes haitianos; e o Estatuto dos Refugiados, que contempla principalmente os imigrantes do Oriente Médio e da África e possibilita que qualquer pessoa, definindo-se como refugiada, possa ingressar em território brasileiro e aqui permanecer até que seu caso seja avaliado, com toda a documentação necessária para se estabelecer e trabalhar.
“O Acordo de Residência, o Visto Humanitário e o Estatuto do Refugiado criaram uma nova situação de fato. É uma situação contraditória. Por um lado, não existem estatísticas nacionais confiáveis nem uma arquitetura institucional de acolhimento. Por outro, existe uma abertura real”, ponderou Freitas.