Carpeaux antes de Carpeaux
Otto Maria Carpeaux (1900 – 1978) foi, talvez, o homem mais culto que já atuou na imprensa brasileira. Várias gerações de leitores se beneficiaram de sua massa enciclopédica de conhecimentos
Pesquisa enfoca os escritos político-ideológicos produzidos por Carpeaux na Europa, antes de ele se exilar no Brasil. |
José Tadeu Arantes/Agência FAPESP
Quando chegou ao país em 1939, após se exilar da Áustria ocupada pelos nazistas, ele dominava nada menos do que 11 idiomas: alemão, inglês, francês, italiano, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, servo-croata e latim. Em um ano aprendeu e passou a dominar também o português.
Em 1941, nas páginas do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, publicou seu primeiro artigo em território brasileiro, iniciando uma trajetória profissional que manteve com regularidade até morrer, vitimado por ataque cardíaco. Entre os muitos livros que escreveu, sobressai a monumental História da Literatura Ocidental, em oito volumes (1947).
Participou também do corpo de redatores da Enciclopédia Mirador Internacional, coordenado por Antônio Houaiss (1915 – 1999). Assim como os artigos publicados na imprensa, também os verbetes redigidos para a enciclopédia destacam-se pela erudição e pelo tom altamente opinativo. Esgrimista da palavra, Carpeaux desconhecia a neutralidade, seja no campo da política seja no campo da cultura.
Foi um opositor corajoso da ditadura civil-militar. Se, em vez de buscar asilo no Brasil houvesse procurado os Estados Unidos, teria provavelmente adquirido, como crítico literário, um renome internacional tão expressivo quanto o de Edmund Wilson. As bitolas do ambiente cultural brasileiro e da língua portuguesa não diminuíram a qualidade de sua obra, mas restringiram-lhe a repercussão.
O jornalista afrancesou seu sobrenome alemão Karpfen, transformando-o em Carpeaux, ao mudar para o Brasil. Sua participação na imprensa europeia vem sendo estudada há anos por Mauro de Souza Ventura, professor no Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual Paulista, no campus de Bauru. E motivou o projeto de pesquisa “O jornalismo político-ideológico de Otto Karpfen: uma análise dos artigos para Der Christliche Ständestaat e Die Erfüllung”, desenvolvido com apoio da Fapesp.
“O impacto do Anschluss, a anexação da Áustria pela Alemanha nazista, foi um divisor de águas em sua vida – um corte tão traumático que Otto Karpfen e Otto Maria Carpeaux são, praticamente, duas pessoas diferentes”, disse Ventura. O pesquisador estudou os escritos europeus de Karpfen tanto em bibliotecas de Viena, quanto de Munique.
“Der Christliche Ständestaat, em que Karpfen atuou entre 1933 e 1937, era um semanário no qual escreviam jornalistas, intelectuais e políticos austríacos e alemães, todos eles de filiação católica, e todos eles defensores da independência da Áustria frente a uma ameaça de anexação iminente”, informou Ventura.
“Era um semanário politicamente democrático, mas filosoficamente conservador, que criticava tanto o nacional-socialismo alemão (nazismo) quanto o bolchevismo russo (comunismo). Não estava ligado à hierarquia da igreja, porém pautava sua visão de mundo pela doutrina cristã. Os artigos de Karpfen para esse periódico eram políticos, e profundamente ideológicos a partir dessa matriz católica”, prosseguiu.
É interessante lembrar que Karpfen, filho de pai judeu e mãe católica, fora educado como judeu, e permaneceu vinculado ao judaísmo até 1933, quando, já casado com sua esposa Helena, também de origem judaica, viveu um processo de conversão ao catolicismo. Isso resultou em sua primeira mudança de nome, quando acrescentou a palavra “Maria” ao prenome Otto.
“Como outros judeus austríacos do período, urbanos, cosmopolitas e altamente intelectualizados, Karpfen professou, na juventude, um judaísmo laico, bastante assimilado. Die Erfüllung, outro periódico em que colaborou, era patrocinado por uma instituição que se propunha a aproximar cristãos e judeus”, acrescentou Ventura.
O grande corte
Além de escrever, ele também editava. E não restringiu sua atividade aos dois periódicos citados. Era um jornalista profissional na acepção da palavra, extremamente ativo. Alinhava-se politicamente com Engelbert Dollfuss e Kurt Schuschnigg, os dois últimos primeiros-ministros da Áustria antes da anexação alemã. Com o assassinato de Dollfuss durante uma tentativa de golpe nazista, em 1934, e a demissão forçada e a subsequente prisão de Schuschnigg por imposição de Hitler, em 1938, a permanência de Karpfen na Áustria tornou-se insustentável.
“O Anschluss, o colapso político da Áustria, a falência do ambiente cultural e ideológico de sua juventude, foi o grande golpe da vida de Karpfen, o grande corte. A partir dele, surgiu Carpeaux, uma outra pessoa, que reviu todos os seus princípios, todos os seus preceitos, toda a sua visão de mundo. Seus primeiros escritos no Brasil ainda mantiveram uma conexão muito forte com a atmosfera cultural europeia. Mas, aos poucos, ele foi buscando um novo caminho, mais aberto, mais plural”, comentou o pesquisador.
A formação cultural universalista de Carpeaux certamente favoreceu essa abertura. Formado em Química na Universidade de Viena, doutorou-se posteriormente em Filosofia e estudou também Matemática, Sociologia, Literatura Comparada, Política e Música. Escrevendo sobre Carpeaux em 2002, o jornalista Sérgio Augusto, que, a despeito da grande diferença de idade, trabalhou com ele no Correio da Manhã, resumiu: “Era uma enciclopédia ambulante, sem se sujeitar, porém, aos efeitos colaterais do eruditismo”.
O estudo de Ventura deverá prosseguir em uma tese de livre-docência, que o pesquisador já está escrevendo e espera apresentar até o final de 2017.