Arqueologia na Amazônia elucida mistério de 500 anos
A imagem mais corriqueira que se tem das tribos pré-históricas amazônicas é que seu modo de vida era baseado na caça e na coleta de alimentos, pois na Amazônia central não haveria recursos para sustentar grandes povoamentos
![]()
|
Peter Moon/Agência FAPESP
Essa imagem, e sua explicação, foram construídas ao longo de séculos de colonização da calha do Amazonas, onde jamais se encontraram vestígios dos imensos povoados indígenas descritos no século 16 pelo frei Gaspar de Carvajal. Como falta de evidência nunca significou evidência de ausência, pesquisas arqueológicas realizadas na última década detectaram os restos do imenso povoamento descrito por Carvajal. Faltava saber como foi que milhares de índios encontravam sustento no local. Não mais.
Um novo estudo arqueológico acaba de demonstrar que, há mais de mil anos, os índios da Amazônia central seriam caçadores esporádicos e, para alimentar milhares de pessoas, eles dependiam principalmente da pesca, assim como ocorre com as populações ribeirinhas atuais. O consumo de tartarugas também era fonte importante de proteína animal. O trabalho foi publicado no Journal of Archaeological Science. As escavações foram feitas no sítio arqueológico Hatahara, que vem sendo estudado há mais de uma década pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, com apoio da FAPESP.


“Para a nossa grande surpresa, mais de 90% eram peixes”, disse Gabriela, pesquisadora da Universidade Federal do Oeste do Pará, em Santarém. Em seguida, vieram os restos de quelônios, principalmente de tartaruga-da-amazônia. “Restos de mamíferos não passaram dos 3%”. Em sua maioria eram pequenos marsupiais como os gambás ou roedores como a capivara, os ratos-de-espinho e a cutia. Também foram achados restos de répteis (jacaré, lagartos e cobras) e de aves.

O segundo grupo mais consumido eram os bagres (ou peixe-gato ou peixes lisos, como são conhecidos na região), caso do surubim, do pintado, do acari, do bodó e tamoatá. A seguir vinha a família das piranhas, especialmente pacu, tambaqui, traíra e o peixe-cachorro. Por fim, entre as principais espécies mais capturadas, estavam os tucunarés, enguias e arraias, entre muitas outras.
“Além das espécies comerciais na Amazônia central, também encontramos espécies que são atualmente pouco consumidas pela população ribeirinha, como o muçum (ou enguia) e diferentes tipos de bacu, cuiú-cuiú e reco-reco”, disse Gabriela. O consumo de tartarugas ocupava também um lugar importante na dieta indígena.

“O estudo complementa trabalhos anteriores que mostram que a população que ocupou o sítio tinha uma dieta diversificada, baseada no manejo de recursos aquáticos e de plantas domesticadas e não domesticadas. Isso mostra que nas áreas ribeirinhas da Amazônia era possível que populações relativamente numerosas tivessem ocupações bem-sucedidas sem dependência da agricultura”, disse Neves, que coordenou o Projeto Temático “Cronologias regionais, hiatos e descontinuidades na história pré-colonial da Amazônia”.
A identificação dos restos de peixes coletados em Hatahara foi realizada por Gabriela no Museu de História Natural de Paris, que conta com uma das melhores e mais diversas coleções de peixes amazônicos. Ela pretende criar uma coleção de pesquisa semelhante na UFOPA. Para tanto, está realizando coletas na Amazônia central, no rio Tapajós, no rio Guaporé em Rondônia e também na Bolívia.

A antiga légua europeia media 6,6 km, logo Carvajal descreveu uma aldeia que ocupava 16 km da margem do rio. Com a chegada dos europeus e de suas epidemias, todas aquelas aldeias foram dizimadas, riscadas do mapa e cobertas pela mata. Por isso mesmo, sua existência foi questionada. O estudo sistemático do sítio arqueológico de Hatahara não só comprovou a existência da enorme aldeia descrita por Carvajal, como agora, com este trabalho de zooarqueologia, solucionou um mistério de 500 anos. Qual era o segredo por trás da subsistência de milhares de índios? Peixe.