Água incita disputa por terras no Nordeste
Água incita disputa por terras no Nordeste
O uso das águas da represa Santa Cruz, no município de Apodi, intensificou a disputa por terras irrigáveis, que se dissemina por muitas partes do Nordeste brasileiro e contrapõe duas visões de desenvolvimento e dois modos de vida
![]() Luis Alves Maia, na feira agroecológica onde, aos sábados, vende suas frutas e verduras, em Apodi. Ele faz parte dos camponeses afortunados que não foram afetados pela pertinaz seca no Nordeste do Brasil, graças à disponibilidade de água. |
Mario Osava, da IPS
O conflito foi contido porque o grande Projeto de Irrigação Santa Cruz de Apodi, aprovado pelo governo federal em 2011, para estabelecer um polo de fruticultura de exportação com o aproveitamento das águas do reservatório, avançou pouco e está parado desde o final de 2014.
No entanto, continua como uma ameaça a experiências de sucesso na agricultura familiar, desenvolvidas na região nas últimas décadas. O projeto afetaria direta ou indiretamente mais de 1.600 famílias de 55 comunidades camponesas do município, disseram à IPS os dirigentes locais do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR). “Damos banho no cavalo com água mineral”, gabou-se Luis Alves Maia para destacar seu privilégio de viver no vale do rio Apodi, até agora não afetado pela escassez hídrica que há cinco anos golpeia o semiárido interior do Nordeste, devido a uma pertinaz seca.
Um poço a 30 metros do rio e uma bomba permitem irrigar sua horta e seu pomar, cuja produção vende aos sábados na feira agroecológica de Apodi, junto com cerca de 30 agricultores familiares. “Com o pé, posso cavar um poço”, brincou Maia, para destacar que a água está quase na superfície. Com 62 anos e dois filhos adultos, que trabalham com ele, esse agricultor demonstra seu entusiasmo entre grandes papaias, batatas-doces e bananas, que vende pela metade ou um terço do que é cobrado em cidades do sul, como o Rio de Janeiro. “Basta para viver e sobra”, garantiu à IPS em sua banca na feira.

A represa, inaugurada em 2002, evitou que o rio Apodi ficasse seco durante a estiagem atual, que já dura cinco anos, como ocorreu em 1983, quando outra situação semelhante açoitou a ecorregião do semiárido, segundo os camponeses mais velhos. Mas o controle do caudal rio abaixo beneficia uma minoria das famílias que vivem no vale. Aelza Neves, de 53 anos e quatro filhos, vive longe do rio e depende do poço de um vizinho, em um povoado que fica a 13 quilômetros de Apodi. Sem poder plantar, sobrevive confeccionando geleia e doces de mamão, coco e outras frutas.
A represa Santa Cruz, segundo maior reservatório do Estado do Rio Grande do Norte, poderia oferecer água por gravidade, portanto, a baixo custo, para milhares de camponeses no vale, fortalecendo ainda mais a agricultura familiar, pontuou Agnaldo Fernandes, presidente do STTR de Apodi. Mas o plano do governo é destinar sua água para um chamado “perímetro irrigado” de monoculturas de frutas, um modelo que se estendeu no Nordeste desde o final dos anos 1960 na bacia do rio São Francisco, principal recurso hídrico da região, que cruza sua parte meridional.
A fruticultura por irrigação tem seu polo mais produtivo mais ao sul, em Juazeiro e Petrolina, municípios separados apenas por esse rio, fomentado pela estatal Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba. A uva e a manga são seus principais produtos de exportação. Em outras áreas, os perímetros estão a cargo do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), agência pública fundada em 1909 para construir represas, estradas e outros projetos destinados a atender as vítimas das secas como os 37 perímetros de irrigação já estabelecidos.

De todo modo, a represa seria insuficiente para irrigar os mais de três mil hectares plantados, segundo um documento elaborado por 20 pesquisadores de sete universidades. Além da inviabilidade hídrica, o projeto poderia destruir progressos singulares da agricultura familiar local, sua produção diversificada e sem agrotóxicos; técnicas de convivência com o clima semiárido, inclusive de irrigação, e organização comunitária, destaca o estudo.
Graças a isso, Apodi mantém em sua área rural metade de sua população, de 34.763 habitantes, segundo o censo de 2010. De suas 55 comunidades rurais ameaçadas, 20 são assentamentos da reforma agrária, somando mais de 700 famílias, segundo dados do STTR. O perímetro irrigado inverteria essa lógica, com monoculturas, exploração empresarial e abuso de agrotóxicos, em detrimento do ambiente, da saúde e da água, segundo seus críticos.
O Dnocs, porém, anunciou que somente 30% da área serão destinados às empresas, e que estas terão apenas 60 hectares de terra irrigados. A maior parte se destinaria a parcelas de oito hectares para pequenos agricultores. Seja como for, o espírito difere. Fala-se em gerar de 12 mil a 13 mil empregos diretos, exportar frutas pelos portos localizados a poucas centenas de quilômetros. Mas nada sobre uma produção diversificada de alimentos, segurança alimentar ou participação feminina.
A suprema contradição é expulsar camponeses para incorporar outros no perímetro irrigado. Vicente de Freitas Neto, de 58 anos, se queixa de que teve expropriados 133 hectares para o perímetro, com a promessa de receber R$ 700 por hectare. “É muito pouco, o japonês paga três vezes mais”, argumentou à IPS, referindo-se a um fazendeiro vizinho que produz melão. “Além disso, ainda não recebi o pagamento e nem sei quando receberei. Fiquei com apenas 24 hectares para 25 herdeiros”, lamentou.
Freitas não é contra a monocultura de frutas em grande escala. Dois de seus quatro filhos trabalham na Agrícola Famosa, a maior empresa exportadora de frutas no Brasil, que tem parte de sua produção em uma fazenda de 1.700 hectares incrustrada entre comunidades camponesas da meseta de Apodi.
A empresa, fundada em 1995, cultiva 27 mil hectares em 19 fazendas em dois estados do Nordeste, onde produz principalmente melão e melancia, exportando 75% da produção. Chegou a Apodi em 2015, atraída por seus aquíferos como solução para a seca. Sua irrigação é feita com água de poços que chegam a ter centenas de metros de profundidade.
Genival da Silva, viúvo de 50 anos e com três filhos, também trabalha na Agrícola Famosa há 16 meses e defende o uso de pesticidas. “Só se aplica veneno à noite e com o trabalhador protegido”, afirmou à IPS. Mas, “se voltarem as chuvas, voltarei a cultivar minha terra”, acrescentou (Envolverde/IPS).