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Água incita disputa por terras no Nordeste 

em Especial
quinta-feira, 19 de janeiro de 2017
Mario Osava/IPS

Água incita disputa por terras no Nordeste

O uso das águas da represa Santa Cruz, no município de Apodi, intensificou a disputa por terras irrigáveis, que se dissemina por muitas partes do Nordeste brasileiro e contrapõe duas visões de desenvolvimento e dois modos de vida

Mario Osava/IPS

Luis Alves Maia, na feira agroecológica onde, aos sábados, vende suas frutas e verduras, em Apodi. Ele faz parte dos camponeses afortunados que não foram afetados pela pertinaz seca no Nordeste do Brasil, graças à disponibilidade de água.

Mario Osava, da IPS

O conflito foi contido porque o grande Projeto de Irrigação Santa Cruz de Apodi, aprovado pelo governo federal em 2011, para estabelecer um polo de fruticultura de exportação com o aproveitamento das águas do reservatório, avançou pouco e está parado desde o final de 2014.

No entanto, continua como uma ameaça a experiências de sucesso na agricultura familiar, desenvolvidas na região nas últimas décadas. O projeto afetaria direta ou indiretamente mais de 1.600 famílias de 55 comunidades camponesas do município, disseram à IPS os dirigentes locais do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR). “Damos banho no cavalo com água mineral”, gabou-se Luis Alves Maia para destacar seu privilégio de viver no vale do rio Apodi, até agora não afetado pela escassez hídrica que há cinco anos golpeia o semiárido interior do Nordeste, devido a uma pertinaz seca.

Um poço a 30 metros do rio e uma bomba permitem irrigar sua horta e seu pomar, cuja produção vende aos sábados na feira agroecológica de Apodi, junto com cerca de 30 agricultores familiares. “Com o pé, posso cavar um poço”, brincou Maia, para destacar que a água está quase na superfície. Com 62 anos e dois filhos adultos, que trabalham com ele, esse agricultor demonstra seu entusiasmo entre grandes papaias, batatas-doces e bananas, que vende pela metade ou um terço do que é cobrado em cidades do sul, como o Rio de Janeiro. “Basta para viver e sobra”, garantiu à IPS em sua banca na feira.

Represa Santa Cruz, com redução de água após cinco anos de seca, e parte do vale do Apodi, à esquerda, onde se concentra a atividade agrícola do município. O uso das águas do reservatório coloca em confronto dois modelos produtivos e duas formas de vida no Nordeste brasileiro.“Vendemos tudo cedo, às nove da manhã já vendemos quase tudo, porque as pessoas preferem nossas verduras sem agroquímicos, que duram mais: uma semana na geladeira sem estragar”, explicou sua vizinha na feira, Aldivana Marinho, de 40 anos e dois filhos. O veneno agrícola causa doenças”, afirmou o professor primário Raimundo Neto, de 51 anos, assíduo comprador nesse mercado, há sete anos.

A represa, inaugurada em 2002, evitou que o rio Apodi ficasse seco durante a estiagem atual, que já dura cinco anos, como ocorreu em 1983, quando outra situação semelhante açoitou a ecorregião do semiárido, segundo os camponeses mais velhos. Mas o controle do caudal rio abaixo beneficia uma minoria das famílias que vivem no vale. Aelza Neves, de 53 anos e quatro filhos, vive longe do rio e depende do poço de um vizinho, em um povoado que fica a 13 quilômetros de Apodi. Sem poder plantar, sobrevive confeccionando geleia e doces de mamão, coco e outras frutas.

A represa Santa Cruz, segundo maior reservatório do Estado do Rio Grande do Norte, poderia oferecer água por gravidade, portanto, a baixo custo, para milhares de camponeses no vale, fortalecendo ainda mais a agricultura familiar, pontuou Agnaldo Fernandes, presidente do STTR de Apodi. Mas o plano do governo é destinar sua água para um chamado “perímetro irrigado” de monoculturas de frutas, um modelo que se estendeu no Nordeste desde o final dos anos 1960 na bacia do rio São Francisco, principal recurso hídrico da região, que cruza sua parte meridional.

A fruticultura por irrigação tem seu polo mais produtivo mais ao sul, em Juazeiro e Petrolina, municípios separados apenas por esse rio, fomentado pela estatal Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba. A uva e a manga são seus principais produtos de exportação. Em outras áreas, os perímetros estão a cargo do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), agência pública fundada em 1909 para construir represas, estradas e outros projetos destinados a atender as vítimas das secas como os 37 perímetros de irrigação já estabelecidos.

Esqueleto abandonado da estação de bombeamento de água do paralisado projeto de irrigação da represa Santa Cruz, que ia dirigir as águas do rio Apodi para nove mil hectares dedicados à produção intensiva de frutas para exportação, no Estado do Rio Grande do Norte.O de Apodi seria o de número 38, com irrigação de nove mil hectares. As terras ficam em uma meseta, cerca de 80 metros acima do ponto de captação das águas da represa Santa Cruz, rio abaixo. Uma pequena represa no rio, canais de captação e distribuição de água, o esqueleto de uma estação de bombeamento e tubulações abandonadas recordam o grande projeto frustrado do Dnocs.

De todo modo, a represa seria insuficiente para irrigar os mais de três mil hectares plantados, segundo um documento elaborado por 20 pesquisadores de sete universidades. Além da inviabilidade hídrica, o projeto poderia destruir progressos singulares da agricultura familiar local, sua produção diversificada e sem agrotóxicos; técnicas de convivência com o clima semiárido, inclusive de irrigação, e organização comunitária, destaca o estudo.

Graças a isso, Apodi mantém em sua área rural metade de sua população, de 34.763 habitantes, segundo o censo de 2010. De suas 55 comunidades rurais ameaçadas, 20 são assentamentos da reforma agrária, somando mais de 700 famílias, segundo dados do STTR. O perímetro irrigado inverteria essa lógica, com monoculturas, exploração empresarial e abuso de agrotóxicos, em detrimento do ambiente, da saúde e da água, segundo seus críticos.

O Dnocs, porém, anunciou que somente 30% da área serão destinados às empresas, e que estas terão apenas 60 hectares de terra irrigados. A maior parte se destinaria a parcelas de oito hectares para pequenos agricultores. Seja como for, o espírito difere. Fala-se em gerar de 12 mil a 13 mil empregos diretos, exportar frutas pelos portos localizados a poucas centenas de quilômetros. Mas nada sobre uma produção diversificada de alimentos, segurança alimentar ou participação feminina.

A suprema contradição é expulsar camponeses para incorporar outros no perímetro irrigado. Vicente de Freitas Neto, de 58 anos, se queixa de que teve expropriados 133 hectares para o perímetro, com a promessa de receber R$ 700 por hectare. “É muito pouco, o japonês paga três vezes mais”, argumentou à IPS, referindo-se a um fazendeiro vizinho que produz melão. “Além disso, ainda não recebi o pagamento e nem sei quando receberei. Fiquei com apenas 24 hectares para 25 herdeiros”, lamentou.

Freitas não é contra a monocultura de frutas em grande escala. Dois de seus quatro filhos trabalham na Agrícola Famosa, a maior empresa exportadora de frutas no Brasil, que tem parte de sua produção em uma fazenda de 1.700 hectares incrustrada entre comunidades camponesas da meseta de Apodi.

A empresa, fundada em 1995, cultiva 27 mil hectares em 19 fazendas em dois estados do Nordeste, onde produz principalmente melão e melancia, exportando 75% da produção. Chegou a Apodi em 2015, atraída por seus aquíferos como solução para a seca. Sua irrigação é feita com água de poços que chegam a ter centenas de metros de profundidade.

Genival da Silva, viúvo de 50 anos e com três filhos, também trabalha na Agrícola Famosa há 16 meses e defende o uso de pesticidas. “Só se aplica veneno à noite e com o trabalhador protegido”, afirmou à IPS. Mas, “se voltarem as chuvas, voltarei a cultivar minha terra”, acrescentou (Envolverde/IPS).