Ricardo Cerqueira Leite (*)
A tentativa de conciliar o tema “direitos fundamentais” com o pragmatismo do “mundo dos negócios” pode parecer, à primeira vista, inglória. O primeiro tema pode versar sobre questões até mesmo existenciais e mais transcendentais, enquanto que a realidade corporativa parece ser um ambiente voltado para a entrega de soluções práticas em atendimento aos desafios, desejos e necessidades do dia a dia comercial, fortemente marcado pelo intuito de resultados financeiros.
Cabe o questionamento e a provocação. Há algum ponto de intersecção entre esses dois ambientes, direitos fundamentais e o mundo dos negócios, que valha a pena comentar? Essa intersecção é relevante o suficiente para levar os agentes de um dos ambientes a se aproximarem do outro ambiente ou de fato não há como conciliá-los?
Sem dúvida há um ponto de conexão, extremamente relevante, pois se trata do próprio ser humano, ou para usar um termo jurídico, da pessoa natural. Ela é ao mesmo tempo a titular dos direitos humanos fundamentais e a meta de conquista de qualquer iniciativa empresarial. Somos em um momento consumidores, usuários da tecnologia, clientes e no mesmo instante o beneficiário da proteção jurídica do ordenamento, o ser humano.
Empreender e executar planos de negócio sem conhecer os direitos fundamentais daqueles que vão adquirir os produtos ou serviços pode resultar num cenário de menor desenvolvimento do potencial do projeto, e até no seu fracasso, pois o beneficiário da solução a ser entregue pelo mundo corporativo, ou os colaboradores, não foram contemplados no tocante às suas prerrogativas. Vale destacar que direitos fundamentais, numa conceituação mais abrangente, sem adentrar as distinções atribuídas aos direitos humanos, são direitos assegurados por mandamento constitucional e que têm como características essenciais, dentre outras, a inviolabilidade, a inalienabilidade e irrenunciabilidade.
Noutras palavras, outorgam aos seus titulares um nível de proteção jurídica qualificado diante da relevância de seus atributos. Deixe-me dar alguns exemplos de como esses direitos se relacionam com o mundo dos negócios. Alguns exemplos são mais claros e outros mais sutis. O importante é compreender que o conhecimento e a observância dos direitos fundamentais do público alvo, ou mesmo dos colaboradores, gera o diferencial da iniciativa empreendedora.
Defender o meio ambiente, num passado não tão distante, parecia tarefa de idealistas. Predominava o império do direito de propriedade em seu viés mais absoluto, que dispõe ao seu titular a faculdade da posse, uso e fruição, outrora com limitações muito tênues. Foi na década de 1970, após a realização da Conferência de Estocolmo, em 1972, que a legislação mundial e mesmo nacional ganha maior impulso para finalmente, na Constituição Federal de 1988, aqui no Brasil, ganhar status de Direito Fundamental, reservando a Carta Magna o direito de qualquer cidadão de propor ação popular para proteger o meio ambiente (Art. 5 LXXIII).
Os pronunciamentos do presidente Jair Bolsonaro sobre as queimadas na Floresta Amazônica geraram grande incômodo na comunidade internacional e a região chegou, inclusive, a ser tema de Painel do Fórum Econômico, em Davos, no final de janeiro. Isso porque desenvolver atividade econômica sem uma pauta de sustentabilidade é impensável no século XXI. Desta forma, o direito fundamental de proteção ao meio ambiente tem sido decisivo para definir estratégias de mercado. Os agentes que se anteciparam e se adequaram ganharam diferencial competitivo.
Vamos a outros exemplos mais sutis sobre os efeitos mercadológicos decorrentes das práticas que visam reconhecer e proteger outros direitos fundamentais. O artigo 5, inciso VI da Constituição Federal estabelece que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Parece inquestionável reconhecer como inviolável a liberdade de consciência. O direito de pensar e adotar sua própria visão da realidade que cerca o indivíduo não poderia ser visto de outra maneira senão como direito fundamental. Ocorre que esse direito tem desdobramentos naturais. Quem tem livre consciência estabelece as próprias crenças, e vale dizer, tem o direito fundamental de manifestar-se conforme suas práticas religiosas.
Portanto, o direito à liberdade religiosa, assim como o direito à proteção ao meio ambiente, é um direito fundamental. Esse direito, liberdade religiosa, quando reconhecido por meio de políticas públicas e conscientização social, estabelece um ambiente propício às trocas e aos negócios. Por exemplo, os países do Oriente Médio são predominantemente muçulmanos. No entanto, são consumidores relevantes de produtos brasileiros, uma nação predominantemente cristã. Essas trocas exigem habilidade para lidar com aqueles que divergem das práticas religiosas. Sem essas habilidades, não haveria negócios.
Cultivar o respeito, a tolerância e, acima de tudo, a observância em sua essência deste direito fundamental, a liberdade religiosa, resultará num contexto de maior progresso econômico. Está demonstrado que a liberdade religiosa é boa para os negócios. Neste mesmo contexto, a acomodação no ambiente de trabalho aos que adotam fé em correntes religiosas minoritárias transforma o local e cria um espaço muito mais adequado ao desenvolvimento de talentos, pois adota a inclusão como princípio, decorrente da observância prática deste direito fundamental.
Por fim, um exemplo derradeiro. Aguardamos o início da vigência da Lei 13.709/18, que versa sobre a Proteção de Dados. Essa legislação visa a reconhecer o empoderamento do usuário de tecnologia que compartilha seus dados em meio virtual. Por muito tempo, a ética predominante no meio virtual fora a troca de conteúdo por dados pessoais. No entanto, a sociedade reconheceu que o ambiente virtual sem a proteção adequada expõe o direito fundamental da “privacidade”.
No passado, privacidade se relacionava mais com o direito de não ser incomodado, de estar só. Esse direito se relacionava muito com o direito de propriedade, também fundamental, pois seu titular não aceitaria que terceiros o monitorassem em seu próprio espaço. Ocorre que numa economia em que os dados se tornaram um ativo importante, deixar de protegê-los resulta justamente na inobservância dessa privacidade, pois o acompanhamento do indivíduo, em detrimento de sua privacidade, ocorre de maneiras sutis mais muito mais eficiente.
A tecnologia atual permite identificar hábitos de consumo, horários de descanso, práticas pessoais e tantos outros itens que deveriam estar restritos à privacidade do cidadão. Como consequência, as empresas vão precisar se adequar aos termos e condições dessa legislação e, vale dizer, deverão permitir o livre acesso aos dados pelo usuário, melhorar a proteção e segurança desses dados, dentre tantas outras práticas. Cumpre destacar que a PEC 17/2019, já aprovada na Comissão de Justiça e Cidadania, bem como na Comissão Especial, visa a elevar o direito de proteção de dados à natureza de direito fundamental, com todas as suas características já mencionadas acima.
Em conclusão, o estudo dos direitos fundamentais e sua apreensão, oferecem conhecimentos ao seu detentor que permite estabelecer diferenciais em seus negócios e mesmo se antecipar a tendências. A visão que direitos fundamentais é tema que se restringe ao ambiente filosófico ou jurídico sem aplicação prática é turva e incorreta pois me parece que ao observador mais atento, que consegue adequar seus produtos e serviços e alinhá-los também pela ótica desses direitos, cedo ou tarde vai colher os frutos do reconhecimento daquele que, numa instância final, é o titular do direito e, ao mesmo tempo, o beneficiário das soluções ofertadas e a serem ofertadas pelo mundo corporativo: o ser humano.
(*) – Sócio fundador da Cerqueira Leite Advogados Associados, é mestre em Direito Comercial Internacional pela Universidade da Califórnia. Especialista em Direito Tributário e em Direito Empresarial pela PUC-SO, é professor de Direito Comercial e membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/SP.