“Andando pelas ruas de São Paulo, o médico Bráulio Gomes viu uma mulher dando à luz na calçada. Depois de ajudá-la no parto e abrigá-la em sua casa, o doutor decidiu construir um hospital para que as mães sem condições de pagar uma maternidade tivessem um mínimo de conforto na hora de terem seus filhos”.
Essa história me foi contada pelo também médico, Duílio Crispim Farina, ginecologista e obstetra durante 45 anos e intelectual de grande produtividade literária que ocupou cadeiras acadêmicas nas áreas de Letras, História e Medicina, entre outras. Realizou mais de dez mil partos e cerca de cinco mil cirurgias ginecológicas, boa parte na Maternidade São Paulo, fundada pelo próprio Bráulio Gomes, em 1894. A Maternidade São Paulo funcionou como instituição beneficente durante 109 anos, até sua desativação em 15 de setembro de 2003, penhorada em razão de uma dívida à época em torno dos seis milhões de reais.
Seu prédio, demolido em agosto de 2014, se localizava na rua Frei Caneca a poucos metros da avenida Paulista. Com catorze andares, foram ali realizados um número incontável de partos, chegando a cerca de 160 mil somente na década de 1980. Entre as figuras conhecidas de nossa sociedade, nasceram naquela maternidade, personalidades como Ayrton Senna, Amyr Klink, Paulo Maluf, William Bonner, Susana Vieira e Nelson Motta entre outras, além de inúmeras pessoas vindas de famílias operárias e de classes mais humildes.
O acervo documental da maternidade foi preservado, inclui um número acima de 1630 livros de registro dos nascimentos no período entre 1901 e 2003 e se encontra sob custódia do Arquivo Público do Estado de São Paulo, só podendo ser consultado com a autorização de um juiz.
Duílio Crispim Farina nos presenteou com vários de seus livros, dos quais destacamos “Esculápios, Boticas e Misericórdias na Piratininga D’Outrora”, publicado em 1992, onde cita a trajetória de antigos médicos que atuaram em São Paulo durante o século XIX. O Dr. Duílio, neste livro, escreve passagens sobre o médico e liberal italiano, Giovanni Batistta, ao qual prefere chamá-lo pelo seu nome em português, João Batista Líbero Badaró, o pioneiro na aplicação da vacina antivariólica.
No Brasil além da medicina, também exerceu o jornalismo e fundou em 1829, o jornal “Observador Constitucional”, onde denunciava desmandos e excessos cometidos pelos governantes, sendo reconhecido em nossos dias como símbolo de defesa da liberdade de imprensa. Na medicina, um mês antes de sua morte, o grande liberal dirigiu-se à Câmara Municipal de São Paulo oferecendo centenas de lâminas de vacina “para que as façam distribuir pelas diferentes vilas que mais necessitarem”.
Ao ser baleado em 21 de novembro de 1830, na Rua São José, que hoje leva seu nome, Líbero Badaró disse a frase que o notabilizaria: “morre um liberal, mas não morre a liberdade”.
Outro importante nome, entre os doutores da São Paulo antiga, é o do Dr. Antônio Caetano de Campos, médico de campanha na Guerra do Paraguai e depois cirurgião da Santa Casa de Misericórdia na capital paulista, além de importante educador. Com o apoio de diversos intelectuais implantou a primeira Escola Normal de São Paulo, cuja sede na Praça da República, passou a receber seu nome.
Entre os “esculápios” de destaque o autor se refere também a Inácio Achiles Bertoldi, defensor dos enterros em cemitérios e não nas igrejas como aconteciam, por questões de higiene e saúde pública. Graças às suas iniciativas se inaugurou o cemitério da Consolação, a 15 de agosto de 1858.
Mas um capítulo inteiro é dedicado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que ele chama “Casa de Arnaldo”, numa homenagem a seu fundador, o Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, fazendo a ressalva, no entanto, que “a primeira voz a se fazer ouvir, a clamar por uma escola de medicina foi a de Cesário Mota Júnior em 1878”, trinta e quatro anos antes da inauguração da faculdade localizada na avenida hoje chamada Dr. Arnaldo.
Sobre as boticas, nome que ainda se dá às farmácias de manipulação, o médico e pesquisador da História, Duílio Crispim Farina cita o preparo de antigas receitas, segundo ele, “à base de práticas nativas”, como a erva carapiá, ou trigueirilho terrestre, “singular antídoto contra as febres”. Ele conta que “nas boticas, os paulistanos matavam o tédio das horas monótonas e sensaboronas comentando os acontecimentos sociais na Botica do Lúcio, ou matando prosa na de Dionísio Aeropagita da Mota, filho do também boticário Vicente Pires da Mota, pai do reverendo padre Vicente, mais tarde Conselheiro Pires da Mota”.
O Dr. Duílio acrescenta que em 1885, “existiam nesta capital somente seis farmácias, “as de Joaquim Pires de Albuquerque Jordão (Rua do Comércio), Júlio Lehmann (Largo do Palácio), Manoel Rodrigues da Fonseca Rosa (Rua do Ouvidor), Antônio José de Oliveira (Rua Direita) e Gustav Schaumann (Rua São Bento)”, sendo este o fundador da tradicional botica “Ao Veado D’Ouro”, inaugurada por este proprietário de origem alemã no ano de 1858, época em que a cidade de São Paulo possuía apenas 30 mil habitantes atendidos por três dentistas, doze médicos, quatro farmacêuticos e um oculista. “Luiz Maria da Paixão era o dono, na mesma época, de uma botica que funcionava no Hospital da Misericórdia”, registra o autor, sem especificar o endereço.
Sobre as misericórdias, instituições gratuitas de atendimento, vale citar que a primeira delas é a Santa Casa de Lisboa, fundada a 15 de agosto de 1498, pela rainha D. Leonor de Lencastre, por invocação à Nossa Senhora da Misericórdia, e a Santa Casa mais antiga do Brasil é a de Santos, fundada em 1543. Na cidade de São Paulo, não há registros da data exata de sua fundação, mas estima-se que a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, tenha sido criada por volta de 1560.
Seu primeiro endereço também é incerto, entende-se que a irmandade já esteve alojada no Largo da Misericórdia, dentro do burgo paulistano e daí o nome do logradouro. Depois na Chácara dos Ingleses, cujo endereço ficava na atual Rua da Glória. O atual prédio, em estilo neo-gótico, no bairro de Santa Cecília, é de 1884.
Sobre o médico e político, Cesário Mota Júnior, que dá nome à rua onde se localiza a Santa Casa, o Dr. Duílio Crispim Farina escreve que ele se empenhou também na criação do Ginásio do Estado, tradicional casa formadora da elite intelectual, responsável pelos destinos da cultura e ciência em São Paulo, durante boa parte do século XX.
Duílio foi aluno do Ginásio do Estado, durante a década de 1930, tendo como colega o jurista Hélio Bicudo, ainda ativo e quase centenário. O Dr. Duílio Crispim Farina, a quem tivemos a honra de conhecer em reuniões memoráveis na década de 1990, promovidas pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, nasceu a 9 de dezembro de 1921 e se despediu de todos em uma data especial para os paulistas, 25 de janeiro, no ano 2003.
(*) Geraldo Nunes, jornalista e memorialista, integra a Academia Paulista de História. ([email protected])