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Por que respeito a aristocracia

em Artigos
quinta-feira, 30 de março de 2017

Amadeu Roberto Garrido de Paula (*)

Cansou-se dizer que a linguagem é um grosseiro cobertor da verdade. Não tenho dúvidas quanto a isso.

O grande drama humano esteve em comunicar-se. Os desentendimentos, a expressão errônea do desejo que efetivamente nos impulsiona, o perdão não dado malgrado o coração, cerceado pela pronúncia, serviu à nossa infelicidade, porque é mais feliz quem perdoa do que quem recebe o perdão. O regime político que gostaríamos de ter e fica represado em nosso pensamento.
A nefanda demagogia, pilar de quase todos os governos contemporâneos.

A humanidade e cada povo criou com extrema dificuldade e embaraços seus símbolos de comunicação; construiu regras que têm um férreo sentido lógico, mas são chicoteadas todos os dias, principalmente sob a irresponsabilidade de muitos que se servem das redes sociais. Falar errado não é problema nenhum, dizem esses verdugos do vernáculo. É. Não raro imprime outro sentido ao pensamento. E provocam, àqueles que amam sua língua, arrepios, um incômodo que induz nosso afastamento do interlocutor.

Uma das expressões mais deturpadas, no curso da história, foi o de aristocracia. Não é um regime de governar, mas de viver, por vezes no comando da coisa pública. Tem origem no grego “aristokrateia”, no qual está embutido, sim, o governo. O “governo dos melhores”, que pode, ou não, descambar para a oligarquia, em que prevalecem os interesses privados, o mesmo que plutocracia, o governo em favor dos mais ricos.

Na verdade, o governo deve direcionar-se em favor dos mais pobres. Os mais ricos se autotutelam e, geralmente, devem ser contidos em sua voracidade de tirar o sangue e muito mais dos mais pobres. E a aristocracia pode fazer isso. Seu nome é democracia.

Aristocracia é mais um modo de vida. O falar em bom tom, baixo. O caminhar ereto e digno, porque nossa honestidade o autoriza. O modo de solucionar de modo respeitoso e inteligente os conflitos inevitáveis. A deferência a todas as pessoas, segundo o ditame de Kant, vê-las, todas, como fins em si, jamais como meios para somente auxiliá-los em sua vida. Aceitar os reveses com todas as forças possíveis. Sei que, nos casos extremos, no luto, principalmente por um acontecimento sem previsão e lógica, não se pode ser impassível.

Mas a falta de impassibilidade não desnatureza a mulher e o homem aristocratas. O aristocrata pode vestir-se bem. Ou a personalidade de um poeta, um romancista ou cientista se impõe por si, independentemente das vestes. Muitos dariam a vida para falar por alguns minutos com o velho Tólstoi, no alto de um morro, barbas longas e vestimenta de mujique. Até hoje lembro-me de um episódio envolvendo o tema, aparentemente insólito.
Presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da USP, compareci a uma reunião clandestina da esquerda no então DCE livre da USP, na companhia de uma moça de esquerda, não rica, mas de uma família tradicional da esquerda, que se vestia de salto alto, longo e um inesquecível chapéu de abas brancas. Qualquer um pôde imaginar que não era o DOPS, mas um ser marciano que tinha caído subitamente na reunião. Não a vejo a 45 anos, mas sei que jamais perdeu o charme.

Aristocratas são os cidadãos caracterizados pelo prestígio social, por herança de famílias cultas, pelo renome oriundo de determinadas áreas científicas, religiosas, artísticas etc. Repudio a expressão aristocracia burguesa ou aristocracia proletária, porque seus atores não são necessariamente aristocratas. Em geral, muito pelo contrário.

(*) – Advogado e sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados, com uma ampla visão sobre política, economia, cenário sindical e assuntos internacionais.