José Pio Martins (*)
Ninguém detém o monopólio da verdade. Logo, o debate deve ser cultivado, pois é fonte de aprendizado. Mas, como dizia Roberto Campos, o debate honesto pressupõe o conhecimento dos termos do problema.
Tornou-se moda no Brasil rotular de “neoliberal” qualquer medida que não seja estatizante ou reprovada pelos socialistas. Para começo de conversa, o Brasil nunca foi liberal, nem neo nem velho. É o contrário: o currículo do país contém um elenco de características antiliberais.
O país não tem moeda conversível. Há monopólio do câmbio (a flutuação do preço do dólar é livre, mas não há liberdade para reter ou transacionar internamente em moeda estrangeira).
Num espaço de 20 anos, houve cinco planos econômicos, quatro congelamentos, um confisco, uma moratória internacional e várias mudanças de padrão monetário. Quando Collor assumiu, o país tinha 546 empresas estatais, entre elas vários monopólios. Os maiores setores da economia eram monopólios estatais (petróleo, energia, portos, aeroportos, telecomunicações, siderurgia, mineração, comércio de trigo, de café, de açúcar e de álcool, etc).
A carga tributária nominal nas três esferas da federação é estimada em 45% do PIB. A arrecadação efetiva do governo é de 33% do PIB. A previdência social dos trabalhadores privados é um monopólio estatal. Até um ano atrás, não havia liberdade de negociação salarial. A educação em todos os níveis é regulada pelo governo. A saúde em sua maior parte é monopólio do SUS (não necessariamente ruim). Dos recursos depositados no sistema financeiro pela sociedade, o governo é o maior cliente tomador de empréstimo.
Em 2018, a Fundação Heritage mostrou o Brasil na posição 150 no ranking de liberdade econômica entre 180 nações avaliadas, ou seja, um índice inferior a 149 países. Entre 32 nações do continente americano, o Brasil é apenas o 27.º colocado, isto é, somente cinco nações têm pior ambiente de liberdade para abertura de negócios. Em 2017, o Banco Mundial divulgou seu relatório Doing Business e, sobre o tempo gasto para abrir uma empresa, o Brasil ficou na posição 175 entre 190 países listados. Enquanto na Nova Zelândia, a primeira colocada, abre-se uma empresa em dois dias, no Brasil são necessários 79 dias em média.
Chamar um país assim de liberal é blasfêmia científica. Os liberais não são antiestado. Há problemas cuja solução depende de ação coletiva e necessitam de coordenação estatal. A preservação da liberdade requer uma instituição capaz de proteger os indivíduos das agressões de outros indivíduos (função policial), dar solução aos conflitos e desavenças (função judicial) e defender a sociedade da agressão externa (função militar). Para os liberais, o exercício dessas três funções pelo Estado é legítimo e indispensável para garantir os direitos individuais à vida, à propriedade e à segurança.
Atribuir as mazelas econômicas e sociais do Brasil ao neoliberalismo é uma acachapante falta de lógica. Não há relação de causa e efeito. A pobreza brasileira resulta décadas de estatização e intervenção governamental com seus déficits, inflação, dívida pública e tributação crescente. No dia 28 de junho de 1989, o então candidato do PSDB à presidência da República pelo PSDB, Mário Covas, considerado um dos mais brilhantes homens da esquerda brasileira, fez seu discurso de campanha, no qual reconhecia que não havia liberalismo nenhum no Brasil.
E isso foi antes da queda do Muro de Berlim em 9 de novembro daquele ano, e antes da desintegração do império soviético no ano seguinte. Covas foi deputado federal, senador, prefeito da capital paulista, governador do estado de São Paulo e era militante do mesmo grupo de esquerda do qual nasceu o PT e PSDB. Aquele discurso como candidato, na eleição que elegeu Fernando Collor, chocou as esquerdas justamente por ele dizer que o Brasil precisava de um choque de capitalismo.
“O Brasil não precisa apenas de um choque fiscal. Precisa, também, de um choque de capitalismo, um choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios”, disse Covas. Em outro trecho, afirmou: “Hoje, com a aceleração das transformações tecnológicas, geopolíticas e culturais que o mundo está atravessando, a opção é manter-se na vanguarda ou na retaguarda das transformações. É com esse espírito que temos de reformar o Estado no Brasil. Tirá-lo da crise, reformulando suas funções e seu papel. Basta de gastar sem ter dinheiro. Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios. Basta de empreguismo. Basta de cartórios”.
O Brasil ficou chato e previsível. Não inova nem nos erros. Passados 30 anos, os problemas são os mesmos. E a culpa é só nossa. Como disse Shakespeare na peça Hamlet, “está em nós mesmos, meu caro Brutus, e não nas estrelas, as causas de nossas desgraças”.
(*) – É economista, reitor da Universidade Positivo.