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É preciso privatizar? Isso garante boa governança?

em Artigos
quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Roberto Gonzalez (*)

Em um mundo ideal, todas as empresas, privadas ou estatais, são geridas com base nos mais atualizados conceitos da governança corporativa. Infelizmente, no mundo real não é isso o que acontece. A maioria das companhias se preocupa muito com o lucro e menos com a sustentabilidade sem compreender que sem ela o ganho de hoje pode se tornar em prejuízo no futuro ou mesmo encurtar a vida do empreendimento.

O curioso é que parte considerável da sociedade parece não perceber esse fato. E, não percebendo, defende a privatização como única forma de companhias estatais se tornarem eficientes, considerando que passariam a ser geridas com base em governança corporativa. Antes de continuar é preciso esclarecer que não se trata aqui de ser a favor ou contra as privatizações. E sim de mostrar que a boa gestão depende mais da mudança de cultura e da criação de regras sólidas e da devida fiscalização e punição, caso haja descumprimento a elas.

Então, vamos seguir. Como exemplo, Sabesp e Cemig. A primeira é uma empresa paulista de capital misto da área de saneamento. Controlada pelo governo estadual, é uma companhia que já possui uma política de governança, até porque parte de seu capital já foi privatizado. A Sabesp, há tempos, é listada na B3, o que só é possível porque ela cumpre determinadas exigências de governança feitas tanto pela Bolsa quanto pela CVM.

O mesmo podemos dizer sobre a Cemig. Empresa mineira do setor elétrico, uma das mais importantes do país, diga-se de passagem, também tem parte de seu capital listado na Bolsa. O que os governos, tanto de São Paulo quanto o de Minas Gerais, pretendem é passar o controle total para a iniciativa privada, arrecadar recursos para serem usados em outras áreas e, de quebra, deixar os investimentos necessários sob responsabilidade dos novos controladores.

Se isso é bom para os interesses dos Estados ou do país é outra história. Voltando à questão central deste artigo, será que após serem leiloadas, haverá melhoria nos procedimentos de governanças dessas companhias? Não é possível afirmar com certeza, apenas torcer para que os “novos proprietários” implantem o modelo de gestão mais sustentável que for possível. Isso para o bem da empresa, do Estado e da população como um todo, já que são concessionárias de serviços públicos.

O que tem de ficar claro, é que o maior problema das empresas estatais não é a falta de governança e sim a “ingerência política”. A companhia segue gerida dentro dos melhores conceitos de gestão, dando lucro e se expandindo. Mas, de repente, por alguma razão, algum governante resolve interferir, derruba o CEO, entrega a direção para um político inexperiente de algum partido aliado. Enfim, aquela história que conhecemos. Não que as empresas citadas estejam passando por situações como esta, mas elas estão sujeitas.

Espera-se que, privatizando essa possibilidade acabe e não só elas, mas qualquer outra estatal que seja vendida, passe a ser gerida sem ingerência. Espera-se. Porque, dependendo de como elas forem privatizadas e de quem passará a controlá-las, nem a possibilidade de ingerência estará totalmente afastada nem a implantação de uma gestão verdadeiramente sustentável estará garantida.

Por serem empresas prestadoras de serviços de interesse público, possivelmente ambos os governos manterão em poder uma parte delas na forma de ações especiais, as golden shares. Essas ações possibilitam, de forma mais limitada, a ingerência do governo em certas decisões dos novos gestores, caso seja considerado que a iniciativa seja prejudicial para a sociedade. Não é uma regra existente apenas no Brasil, outros países, como a Alemanha, também adotam este formato, mas não deixa de ser uma brecha a ser explorada por maus políticos.

Outro ponto é que ingerência não existe apenas no setor público. No setor privado também existe isso. Grupos controladores podem muito bem intervir e mudar os rumos e até o modo de gestão da companhia controlada. Governança corporativa não se limita a bons lucros, como muitos possam imaginar. O lucro deve ser fruto de uma boa governança corporativa. E uma empresa que segue à risca um modelo de governança tende a ser sustentável em todos os aspectos, incluindo aí o social e o ambiental porque tudo isso impacta positivamente na rentabilidade.

A Vale é um exemplo de que nem sempre a governança é implantada em sua plenitude após a privatização. Controlada pelo setor privado ela cresceu muito, se tornou protagonista mundial no setor, mas para ter sucesso financeiro fez vista grossa para problemas estruturais em suas barragens que culminaram em uma tragédia ambiental, social e economica. Tem até hoje problemas de imagem e uma dívida com as famílias prejudicadas e com os órgãos de fiscalização que ultrapassam os custos de uma manutenção adequada das barragens.

Recentemente tivemos problema com outra empresa. A Americanas, do setor varejista. Um rombo bilionário veio à tona, derrubando suas ações na Bolsa, prejudicando inúmeros investidores e credores. É uma empresa listada na B3, com regras determinadas pela CVM a serem cumpridas. Mesmo assim houve fraude contábil, procedimento que nada tem a ver com governança corporativa. E como a empresa chegou a esse ponto sem que ninguém percebesse antes. Certamente as regras de gestão não estavam sendo respeitadas, existiam apenas no papel para mostrar aos investidores. Investigações vão apontar o verdadeiro culpado.

Como vemos, por mais importante que seja, a privatização não é garantia de boa governança. Não significa que devemos torcer contra. Pelo contrário, em alguns setores elas são necessárias e liberam o Estado para focar seus esforços no que realmente interessa. O discurso de que o setor privado pode tornar a empresa mais eficiente não é invalido, só não é verdade em todos os casos.

(*) Consultor de governança corporativa e ESG e conselheiro independente de empresas. É autor do livro “Governança Corporativa – O Poder de Transformação das Empresas”.