Gaudêncio Torquato (*)
O Estado brasileiro jamais deixou de ser considerado por parcela significativa da elite política “cosa nostra”.
No momento em que o Brasil entra de corpo e alma na folia carnavalesca, vêm à mente três seres que resumem o repertório de conceitos, mazelas e problemas que devastam as esferas da gestão, da política e da economia. São eles: a vaca, o vampiro e o Pinóquio. A vaca é a Grande Mãe, a deusa que, para o homem primitivo, se repartia nos rios, nas árvores, nos fenômenos naturais e que, entre nós, assume também a posição de entidade que encobre, abriga, defende, acalenta, aconchega.
A vaca é o próprio Estado, que acaba oferecendo suas tetas para milhares de brasileiros sugarem o leite. Muitos até que merecem, pois são exemplos de bons profissionais. Bolsonaro tenta cortar o acesso dos políticos às tetas do bovino, mas a lei de São Francisco é mais forte. O Estado brasileiro jamais deixou de ser considerado por parcela significativa da elite política “cosa nostra”, núcleo do domínio da Grande Família, dos donos do poder, que cultivam o filhotismo, o nepotismo e o familismo, transformando a função pública em patrimônio pessoal.
O país ainda é capenga em matéria de gestão do Estado, cujos pilares repousam em critérios de mérito, racionalidade, controles, transparência, qualidade de serviços e descentralização. São milhões de servidores públicos – mais de 10 milhões – nas três instâncias federativas. A mamãezada, que, segundo Antônio Houaiss, é o “descaso ou conivência dos responsáveis que dão cobertura a subordinados, em caso de imoralidade no serviço público”, constitui a base da muralha que esconde desvios e atos ilícitos, parte dos quais apareceu na mesa da Lava Jato.
Eliminar essa chupeta com os instrumentos da modernização do Estado, implicando nova metodologia para composição dos quadros públicos, é desafio permanente dos governos. Não adianta apenas fundir ou enxugar estruturas sem que esse gesto leve a um profundo corte nos 10% do PIB consumidos na administração pública. A vaca precisa evitar que bezerros estranhos invadam seu curral.
O segundo ente a ser eliminado é o vampiro. O sugador de sangue só aparece na calada da noite, quando a escuridão profunda invade os espaços. O país, de norte a sul, é povoado de vampiros. São encontros na surdina para conluios, emboscadas, negociatas, tramoias contra o Estado. E assim o sangue da Nação é sugado. A receita para eliminar a vampiragem é única: raio de sol. Maços de alho e crucifixos não são suficientes para afugentar vampiros. Com luz na cara, eles correm para suas tumbas e caixões, não se aventurando a arreganhar os dentes. Em suma, escancarar as administrações. Dar transparência aos atos.
Por último, resta cortar o enorme nariz de Pinóquio, o boneco que domina os palcos da política. Pinóquio é a encarnação do Estado-Espetáculo. Da autoglorificação e também da mentira. Essa concepção deriva do conceito de política como teatro. Remonta aos tempos antigos, mas ganhou força a partir dos meados do século passado, com as campanhas políticas norte-americanas. Hitler recebia aulas de declamação. Mussolini inflava seu personagem. Considerava-se um perfeito ator.
No Brasil, a oratória ensinada pelo marketing é um exercício de prestidigitação. O importante é a versão, não a verdade. E hoje as fake news invadem as redes sociais. A palavra é usada para encobrir o pensamento, driblar a intenção. Hordas de radicais, pagos, incluindo empresas especializadas em difundir mentiras, se expandem. A verdade pouco aparece em locuções encadeadas com sujeito, verbo e complemento.
O reino do Pinóquio ocupa todos os espaços. Arabescos, cosméticas exageradas, jargãos, discursos retumbantes e mentiras repetidas – esse é o dicionário usado por Pinóquio. O serrote para cortar o nariz de Pinóquio é a consciência. Façamos uso dela.
(*) – Jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato. Acesse o blog (www.observatoriopolitico.org).