Modernidade traz novos significados aos contos de fadas
A Chapeuzinho Vermelho que se cuide: a Vovozinha e o Lobo Mal são amantes, a Branca de Neve engordou e os Três Porquinhos deixaram de ser o cardápio preferido do Lobo porque ele pode comer hamburgueres e pizzas
Na ilustração de “Vovozinha vermelha e o lobo não tão mal assim”, de Millôr Fernandes, traços pontiagudos e cores fortes. |
Valéria Dias/Agência USP de Notícias
Esses novos significados dos contos de fadas, encontrados em crônicas e tirinhas publicados em jornais e revistas brasileiros, foram analisados pela pesquisadora Elaine Hernandez de Souza em sua tese de doutorado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
“Os contos de fada estão presentes na sociedade há muitos séculos, mas de acordo com a forma como circulam na sociedade, eles recebem um novo significado a partir do repertório cultural próprio de cada época”, explica. Elaine pesquisou essa ressignificação por meio do modo como elas foram retratadas em crônicas do escritor Millôr Fernandes e em tirinhas do cartunista Fernando Gonsales.
Elaine explica que os contos de fadas fazem parte da tradição oral e do folclore e representam um retrato idealizado da realidade. Posteriormente foram associadas ao público infantil. “O primeiro registro escrito difundido mundialmente é do século 17, de autoria do escritor Charles Perrault. Depois vieram outras versões dessas histórias, com os Irmãos Grimm”, conta.
Segundo a pesquisadora, a difusão dos contos de fadas coincide com a Era Industrial. “A burguesia precisava garantir mão de obra, então a criança começou a ser vista de uma forma diferente, assim como o pai e a mãe, pois passaram a desempenhar papéis específicos”, diz.
O lobo mal representa o perigo, mas não enquanto animal e sim como pessoa. Os textos falavam da realidade da época: crescer, trabalhar, casar. As personagens são essencialmente boas ou más e os traços dos desenhos são harmônicos.
Já na pós-modernidade, há uma flexibilização desses papéis: eles são desconstruídos e mostram a realidade não idealizada. De acordo com Elaine, essa desconstrução é muito visível nas crônicas e nas tirinhas.
“Millôr retratou com muita realidade os anos 1980, principalmente, a sociedade carioca do bairro de Ipanema. Em uma das crônicas, os Três Porquinhos são filhos do dono da churrascaria Porcão, muito tradicional no Rio de Janeiro”, conta.
Havia ainda o início da abertura política, na reta final da ditadura militar. “A personagem da Vovozinha é da cor vermelha pois na juventude se disfarçou de velhinha para dar cobertura aos subversivos do PCB. A Chapeuzinho é hippie, já teve vários namorados e o atual usa dreadlocks”, comenta. Os traços dos desenhos são pontiagudos, as cores muito fortes, o preenchimento é borrado, e os personagens aparecem ter deformidades e defeitos.
Em Gonsales, essa desconstrução também é muito visível. “O Lobo se finge de entregador de pizza para tentar comer os Três Porquinhos, mas desiste ao perceber que a pizza é de lombinho”, diz. Quanto ao traço, os personagens são dentuços, desengonçados, narigudos, gordos. A pesquisadora chegou a entrevistar o cartunista. “Essas características fazem parte do processo criacional dele. E o uso dos contos de fadas ocorreu porque, segundo ele, todos conhecem e, por isso, fica fácil fazer humor”.
Ao comparar os dois autores, a pesquisadora analisou os espaços físicos nos quais cada um publicou seus textos (a página do jornal e da revista, se havia independência editorial e outros textos, etc) e também os elementos de aproximação, aqueles que, ao serem visualizados, remetem aos contos de fada. Na história da Chapeuzinho Vermelho, é a vestimenta, a cesta, e a floresta; na Branca de Neve, é a pele branca em contraste com o cabelo preto e o laço vermelho no cabelo, a figura da maçã, a bruxa, o castelo, a cama, e o espelho; nos Três Porquinhos, é a floresta, a casa, e a imagem deles sempre juntos.
De Millôr, foram analisados os textos das chamadas “Fábulas Fabulosas”, publicados em revistas semanais na década de 1980: “Branca de Neve e os Sete Anão“, da Revista Veja, de 1980; “Vovozinha vermelha e o lobo não tão mal assim“, publicado na Revista Isto É, em 1984; e “Os Três Porquinhos e o Lobo Bruto (nossos velhos conhecidos)“, da Revista Isto É, de 1986. De Fernando Gonsales, foram 56 tirinhas publicadas entre 2004 e 2011, na Folha de S.Paulo: 24 da Chapeuzinho Vermelho, 18 da Branca de Neve, 14 dos Três Porquinhos.
Os contos foram ilustrados ao longo do tempo e, entre os ilustradores, o destaque fica com Gustave Doré. “Ele foi responsável por ilustrar também os livros de La Fontaine”, diz a pesquisadora. “Em Doré, rainha e princesa vestiam golas e decotes mais altos. A imagem atual veio das produções da Disney. Originalmente, nem os sete anões nem os três porquinhos tinham nome. Foi a Disney que deu nome a eles”, informa.