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Sobre homens e ratos

em Opinião
quarta-feira, 08 de junho de 2022

Marco Antonio Spinelli (*)

Você não iria querer ser filho de uma Iguana. Os répteis não costumam ter nenhum cuidado com as crias e chegam mesmo a comê-las se derem mole.

Cuidar dos filhotes e mesmo entregar a vida por eles é coisa de espécies mais avançadas, como os Mamíferos. O fato é que a complexidade cerebral foi criando filhotes que não nascem prontos, como os filhotes de Iguana, que são miniaturas de adultos e dependem totalmente de seus instintos para viver. Os mamíferos precisam de cuidados e de aprendizagem, que vem dos adultos e do grupo a que pertencem.

Perder contato com a mãe ou com o grupo acaba sendo uma ameaça direta à sobrevivência do filhote, por isso ele é tão claramente agarrado a quem lhe alimenta e ensina a ser um membro produtivo da sociedade. Quanto melhor for o cuidado que esse pequeno ser tiver de seus cuidadores, melhor será seu amadurecimento, confiança e possibilidade de sobrevivência. Estudos hoje clássicos mostram que filhotes de rato que são mais lambidos e tem mães mais cuidadosas serão ratos mais valentes e menos estressados quando chegarem à idade adulta.

Ratos menos cuidados e com mães indiferentes terão menor capacidade social e menor chance de se reproduzirem. E o que é pior: quando tiverem seus filhotes também serão descuidados e passarão adiante essa característica de descuido e abandono. Serão também mais medrosos e terão maior chance de doenças e morte prematuras. Não precisamos ir muito longe para perceber a analogia com os humanos. O filhote humano completa a sua gestação fora do Útero materno. Precisa de muito cuidado e muita aprendizagem nos primeiros anos de sua vida.

Mães com algum tipo de doença psiquiátrica, sobretudo as não tratadas, tem uma chance maior de gerar filhos com muitos problemas de desenvolvimento, seja da capacidade de aprendizagem a problemas de inteligência e inserção social. Hoje uma mãe que dá uma palmada no filho pode ir parar na delegacia, mas a mãe que deixa a criança sem comer por doze horas, ou que fica alcoolizada quando devia estar cuidando da casa e dos filhos nem chega a ser notada.

Nós, humanos, precisamos muito do apoio do Outro e dos ensinamentos que nos levarão para a vida adulta. Essa é a razão da extrema importância que damos à nossa imagem e opinião dos pares sobre nós. A falta dessa capacidade de aprender ou ensinar está na base de tudo o que faz pessoas e sociedades adoecerem. Precisamos de atenção, de cuidado e de exemplo. A falta disso nos anos iniciais da infância pode causar estragos definitivos em homens e ratos.

Freud trouxe à luz, no final do século XIX, a importância dos traumas infantis na formação dos sintomas psíquicos. Chega a ser engraçado como a Neurociência desdenha da Psicanálise mas bebe exatamente nessa fonte, mostrando e confirmando a importância das experiências e dos traumas da primeira infância inclusive nas populações gênicas que serão ativadas ou não. Isso quer dizer que o Caráter não é herdado, mas aprendido. Ou destruído pelo ambiente e as pessoas.

Quando as pessoas falam de uma cultura corporativa ou do desenvolvimento de pessoas, não podem ignorar esses valores. Como é importante o cuidado, a capacidade de ensinar e acompanhar o crescimento das pessoas e corrigir seus erros. Como o exemplo gera um resultado muito mais profundo do que os blá blá blás motivacionais. E como é importante quem está implementando e ensinando o que as pessoas precisam aprender.

Como os ratos (e outros mamíferos), ter um ambiente organizado e com regras claras gera menos estresse, menores índices de Cortisol, o hormônio do estresse, e menos adoecimento físico e psíquico em gestores e equipe. O cuidado dá lucro, em todos os níveis. As redes sociais mostram como estamos famintos por Atenção e Aprovação do Outro. Isso não é necessariamente ruim. Quem exerce um papel de ser esse Outro tem um papel vital e incrivelmente subestimado em nossa sociedade.

Mães, tias, avós, professores, cuidadores, são a base de tudo o que vai acontecer em nosso futuro. Precisamos dessas pessoas e de seus papéis bem exercidos. Quem pode fornecer isso salva vidas e abre caminhos para o futuro. Quem usa da autoridade para oprimir ou abandonar gera um buraco que demanda muita gente e muito dinheiro para tampar. Como os ratinhos, precisamos desesperadamente de uma cultura de cuidado e de estabelecimento de confiança. Nas famílias, nas comunidades, nas escolas, nas empresas.

Não dá para esperar isso dos governos ou dos políticos. Não dá para esperar mudanças de cima para baixo, só de baixo para cima, e essa seria a verdadeira revolução. Em vez de xingar o candidato, o gestor, o dono da empresa ou seja quem estiver no comando, devemos criar alianças e culturas de transformação em nosso microcosmo. Uma cultura de cuidado e de aprendizagem, já que somos mamíferos tão desesperadamente carentes de aprender quase tudo, todo dia.

Só assim vamos parar de ver homens se comportando como ratazanas.

(*) – É médico, com mestrado em psiquiatria pela USP, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.