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O desafio chileno

em Opinião
segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Victor Missiato (*)

Durante o século XX, o Chile ficou conhecido como um país das inovações políticas na América Latina.

Considerado por muitos um país distinto da tradição “populista” dos anos 1940 e 1950 e precursor de algumas experiências como a Frente Popular nos anos 1930-50, a Unidade Popular, entre os anos 1970-73, o neoliberalismo e a Concertación, o Chile novamente apresenta ao mundo latino-americano uma nova esquerda no poder.

No último domingo, Gabriel Boric tornou-se o presidente eleito mais jovem da história chilena, ao vencer o pleito com 35 anos de idade. Derrotou o candidato da direita, José Antonio Kast Rist, obtendo 56% dos votos. Nascido em Punta Arenas, às margens do Estreito de Magalhães, o jovem político de origem croata, promete liderar “o processo de mudança e transformação que se aproxima”, a partir de uma “gradação necessária”.

Embora muitos estudiosos chilenos rechacem a ideia da especificidade e da especialidade chilena na região, certo é que suas experiências influenciam diretamente no debate acerca do desenvolvimento latino-americano. No Brasil, de Joaquim Nabuco a Fernando Henrique Cardoso, muitos intelectuais olharam e olham para o Chile pensando a modernidade nacional e global.

Na atual conjuntura, o povo chileno vem convivendo com uma nova transformação social. Trata-se do processo de formulação de uma nova constituição, adequada aos tempos democráticos. Herdeira do legado pinochetista, a sociedade chilena modernizou-se radicalmente a partir dos anos 1980, quando sua experiência neoliberal privatizou diversas esferas da vida. Tal modelo de desenvolvimento reformou-se após a derrota da ditadura, no plebiscito de 1988.

A partir da chegada da Concertación ao poder, alternando com as vitórias de Sebatián Piñera no século XXI, o Chile alcançou o posto de país mais desenvolvido da América do Sul. Embora esse modelo de desenvolvimento tenha aperfeiçoado, significativamente, diversas áreas da sociedade, seu calcanhar de Aquiles foi a manutenção e ampliação da desigualdade social, considerada uma das maiores do continente, juntamente com o Brasil.

Foi esse o gatilho para a explosão das Revoltas de 2019, que assim como nas Manifestações de Junho de 2013, no Brasil, eclodiram com o aumento das passagens do metrô. De lá para cá, atravessando o tempo da pandemia, a sociedade chilena aprovou o processo da nova Constituinte e, agora, elegeu o novo representante que auxiliará na liderança da efetivação deste inovador processo.
Dentre os inúmeros desafios, Boric terá que lutar pela aprovação da nova constituição, que em diversos pontos condiz com a sua leitura de mundo e seu projeto de poder.

Além da luta pelo reconhecimento social de diversos setores da sociedade chilena, historicamente relegados ao segundo plano da cidadania, a possível nova carta tentará criar um modelo de Estado de Bem-Estar social, adequado aos novos paradigmas do século XXI, dentre eles, o desenvolvimento sustentável, o ambientalismo e as pautas identitárias. Em muitos aspectos, tais lutas vêm ganhando cada vez mais espaço no Chile e mundo afora. Todavia, no caso específico chileno, um importante desafio deverá ser equacionado.

Ao levarmos em consideração as experiências da esquerda latino-americana no século XXI, percebemos que os três principais modelos fracassaram na luta pelo desenvolvimento, apesar de terem conquistado melhorias em diversas áreas sociais. O chavismo, o kirchnnerismo e o lulopetismo foram projetos que diminuíram os índices de miséria na região em tempos de alta das commodities, mas não colocaram Venezuela, Argentina e Brasil na rota da modernidade.

Ao contrário, esses três países não acompanharam a industrialização 4.0 do século XXI, mantendo-se presos aos seus modelos agro e petro-exportadores, com óbvias diferenças entre si. A partir de 2022, Boric terá pela frente o dilema de diminuir a desigualdade social chilena sem enfraquecer a capacidade produtiva do país, consolidada através de uma larga ampliação de acordos comerciais com diversos países e blocos econômicos.

A abertura da economia chilena criou diversas cadeias produtivas e facilitou a entrada de diversos equipamentos e tecnologias de ponta. Sem qualquer comparação e relação com o Chile de Salvador Allende, deposto em 1973, o governo de esquerda de Boric deverá equilibrar expansão dos gastos sociais com desenvolvimento da produtividade do trabalho na nova era da sociedade do conhecimento.

Advindo dos movimentos estudantis que fizeram o Chile tremer politicamente, o novo presidente terá pela frente a chance de iluminar e influenciar um novo horizonte para o continente, ainda preso a uma dicotomia política obsoleta, que insiste não abandonar o século XX.

(*) – Doutor em História, é professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília e Membro do Grupo de Estudos Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca).