Orixá Exu tem sua imagem desmistificada como ser do mal e assustador
Pesquisa que analisou canções brasileiras mostra as múltiplas faces da entidade, nem sempre negativas, e suas ligações com o negro brasileiro
Ilustração: Caio Vinícius Bonifácio
Antonio Carlos Quinto/ Jornal da USP
Considerado por muitos como um ser “assustador”, o orixá Exu, cultuado nas religiões de matrizes africanas, está fortemente ligado ao negro brasileiro e a sua história. “É possível, inclusive, melhor compreender o Brasil ao entendermos esse orixá”, afirma a educadora Lisandra Pingo, que estudou as características de Exu e suas representações em canções brasileiras.
Além de entender a história do negro brasileiro, o estudo também mostra a necessidade de inclusão das culturas africana e afro-brasileira no ensino público. A pesquisa Uma análise das múltiplas faces de Exu por meio de canções brasileiras: contribuições para reflexões sobre o ensino da cultura e da história africana e afro-brasileira na escola foi apresentada na Faculdade de Educação da USP, em 2018.
Segundo Lisandra, a melhor compreensão de Exu poderá ser ainda uma ferramenta de combate ao racismo. “Em minha pesquisa procurei desconstruir a imagem negativa que foi associada a este orixá”, justifica. Com base em bibliografias e num acervo de 72 canções que citam Exu, das quais sete foram selecionadas para o estudo, a pesquisadora identificou diversas situações que fizeram de Exu um ser malvisto em quase todas as camadas da sociedade brasileira. “As canções são todas de autores brasileiros que trazem diferentes representações do Exu”, descreve.
Para a pesquisadora, o uso das canções que citam a “entidade” facilita a compreensão e reflexão sobre o papel do orixá e suas significações. “Creio ainda que seja uma boa ferramenta a professores no sentido de desmistificar aspectos negativos de Exu e incentivar a disseminação do conhecimento da cultura de origem africana nas escolas, o que estaria de acordo com as Leis 10.639/03 e 11.645/08”, avalia Lisandra.
Um dos fenômenos que a pesquisa analisa é a associação feita do Exu com o demônio cristão. “Tal associação foi feita pela igreja católica e, posteriormente, pelas igrejas evangélicas”, explica a professora, ressaltando que, atualmente, aconteceu uma espécie de “reapropriação” dessa atitude, principalmente pelas igrejas neopentecostais. “É comum observamos nesses templos cultos exclusivos para a expulsão dos demônios, ou do Exu”, descreve.
O estudo também aborda aspectos históricos da questão. “O padre José de Anchieta, por exemplo, trazia o ‘diabo cristão brasileiro’ diferente do ‘diabo cristão europeu’. O primeiro era visto como um ser debochado e zombeteiro, que se aproxima à figura do Saci”, conta. Já o segundo, o europeu, era ‘soturno’ e ‘horrendo’, como cita a professora em seu estudo. “A igreja católica também atribuía as qualidades do ‘diabo cristão brasileiro’ aos índios e aos africanos”, ressalta. E Exu, segundo a pesquisadora, está relacionado a esta personalidade e, principalmente, ao negro.
A identificação de Exu com o negro brasileiro também é devido aos aspectos que esse ‘demônio cristão brasileiro’ ganhou na visão da Igreja Católica, de ser zombeteiro e debochado, por exemplo. “São aspectos da época de colonização que reforçam, desde então, a relação entre Exu e o racismo”, enfatiza Lisandra. Ela lembra ainda que, a partir da criação da Umbanda, no ano de 1917, o estereótipo de Exu aproxima-se ainda mais do brasileiro. “Principalmente nas figuras de José Pelintra e da Pomba Gira, aqueles que conseguem dar um jeitinho em tudo”, destaca Lisandra.
Lisandra reproduz em seu estudo uma definição do Exu que consta no livro “Exu e a ordem do Universo”, de autoria de Sikirù Sàlámi e Ronilda Iyakemi Ribeiro.
“Exu é personagem controversa, talvez a mais controversa de todas as divindades do panteão iorubá. Alguns o consideram exclusivamente mau, outros o consideram capaz de atos benéficos e maléficos e outros, ainda, enfatizam seus traços de benevolência. […] As muitas faces da natureza de Exu acham-se apresentadas nos odus e em outras formas de narrativa oral iorubá: sua competência como estrategista, sua inclinação para o lúdico, sua fidelidade à palavra e à verdade, seu bom senso e ponderação, que propiciam sensatez e discernimento para julgar com justiça e sabedoria. Essas qualidades o tornam interessante e atraente para alguns e indesejável para outros”.
As análises das canções brasileiras escolhidas permitiu a Lisandra algumas definições bem semelhantes do orixá. “Em algumas casas das religiões africanas e afro-brasileiras Exu é o sentinela e protetor”, afirma. Mas ele também assume, em algumas canções, características de uma espécie de mensageiro entre os orixás e o ser humano.
Até mesmo na Umbanda, em alguns casos, ele também é visto como o diabo, pois chegou a ser escravizado pelos próprios orixás. “Sabemos, por exemplo, que existe na Umbanda o Exu de Iemanjá”, cita a pesquisadora. Há ainda, em outras músicas, a identificação do orixá com o feminino, na figura da pomba gira e a definição que o considera um “forte trabalhador”. Desde 2015, quando iniciou sua pesquisa, Lisandra vem analisando e estudando canções que têm Exu em suas letras.
Mas a primeira canção que chamou a atenção da pesquisadora foi uma em que o “diabo era branco”. “A música interpretada pela cantora argentina Mercedes Sosa retratava o diabo como um ser branco. E isso me despertou a questionar por que no Brasil ele era associado ao negro? Teria algo a ver com um sentimento racista?”, recorda a pesquisadora.
Foto: Nevinho/Wikimedia Commons
Nas canções estudadas, Lisandra analisa as associações feitas a Exu. Nas canções Gênesis e Tiro de Misericórdia, observa-se a essência da malandragem. Interpretada por João Bosco, a obra é de autoria do próprio cantor e Aldir Blanc; Na canção Quem me Guia, está implícita a figura do Zé Pelintra e a reinterpretação do malandro. Os intérpretes são Almir Guineto e Beto Sem Braço, que compôs a canção em parceria com Serginho Meriti.
Na canção Lado B Lado A, que tem a interpretação de O Rappa, fica explícita a relação Exu e Iemanjá. Os autores são Marcelo Yuka e Marcelo Falcão. Já na canção Só o ôme, de Edenal Rodrigues, observa-se a figura do Exu protetor, a magia e o trabalho. O intérprete é Noriel Vieira; A figura de Exu, Pomba Gira e a feminilidade surge na canção Labareda, interpretada por Baden Powell, que junto com Vinicius de Moraes compôs a peça. Na canção Exu nas Escolas, temos a figura do Exu mensageiro e seu papel nas escolas. A música de Kiko Dinucci e Edgar é cantada por Elza Soares.
“As canções analisadas, com suas linguagens, musical e literária, ampliaram os ecos históricos e culturais que desenharam os lugares sociais de Exu no Brasil”, define a pesquisadora. Paralelamente à pesquisa, Lisandra escreveu o livro Negritude (en)cantada do Brasil – A trajetória sócio cultural do negro narrada pelas canções brasileiras, em que analisa como os afrodescendentes fizeram parte da construção da sociedade brasileira pelo viés da canção.