Divórcio demorou a chegar no Brasil
Para milhares de famílias brasileiras, o melhor presente do Natal de 1977 chegou no dia seguinte ao feriado. Em 26 de dezembro, finalmente foi sancionada a lei que instituiu o divórcio no país
Fotos:Luiz Macedo/CD Senadores e deputados apoiadores do divórcio festejam no Plenário os votos favoráveis à proposta de Carneiro e Accioly. |
Tatiana Beltrão/ArquivoS-Ag.Senado
Fruto de uma emenda constitucional proposta pelo Senado, a Lei do Divórcio permitiu uma profunda mudança social no Brasil. Até então, o casamento era indissolúvel. A maridos e esposas infelizes só restava o desquite — o que encerrava a sociedade conjugal, com a separação de corpos e de bens, mas não extinguia o vínculo matrimonial.
Assim, pessoas desquitadas não podiam casar novamente. Quando voltavam a se unir a alguém, a união não tinha respaldo legal. E os filhos eram considerados ilegítimos, como se gerados em relacionamentos extraconjugais. Além de não terem amparo da legislação, esses casais — que viviam “em concubinato”, segundo o termo jurídico — sofriam preconceito, especialmente as mulheres. A Lei do Divórcio permitiu que centenas de milhares de homens e mulheres voltassem a casar no civil para constituir famílias legítimas aos olhos da lei.
Mas a aprovação desse instrumento, um marco na história do direito de família, não foi fácil. O Brasil acabou sendo um dos últimos países do mundo a instituir o divórcio. Dos 133 Estados integrantes das Nações Unidas na época, apenas outros 5 ainda não o permitiam. Por décadas, a questão havia dividido a população e o Congresso. A adoção do divórcio sofria forte oposição da Igreja Católica e de setores conservadores da sociedade, que lutavam para manter o preceito constitucional — inserido na Carta Magna de 1934 e mantido nas constituições seguintes — de que o casamento era indissolúvel.
Fotos:Luis Macedo/CD Com a mulher, Maria Luísa, Carneiro comemora aprovação em primeiro turno da emenda que abriu caminho para o divórcio. |
O primeiro projeto divorcista foi apresentado ao Parlamento em 1893. Outros se seguiram ao longo dos anos, sempre derrubados, até junho de 1977, quando o senador Nelson Carneiro (MDB-RJ), depois de 26 anos de luta política pelo divórcio, conseguiu aprovar no Congresso uma emenda constitucional, dele e do senador Acciolly Filho (Arena-PR), para alterar o trecho da Carta que impedia a dissolução do vínculo matrimonial. Foi essa mudança que abriu caminho para a Lei do Divórcio.
Em entrevista em 1995, um ano antes de sua morte, Carneiro falou sobre as razões de a lei ter demorado tanto a chegar. Defender o divórcio era comprar uma briga difícil: “Era uma coisa que o país inteiro reclamava, mas faltava alguém que tivesse a coragem de afrontar, porque sabia que ia ter contra si as forças tradicionalistas, inclusive a Igreja”. A discussão no Congresso sobre propostas para permitir o divórcio mobilizava o país em 1977. O embate entre parlamentares divorcistas e antidivorcistas refletia a profunda divergência de opiniões na sociedade.
De um lado, lideranças católicas convocavam os fiéis a protestar contra “a destruição da família brasileira”. No front oposto, movimentos como a Campanha Nacional Pró-Divórcio defendiam a mudança, que, segundo eles, daria a milhões de brasileiros a chance de regularizar suas famílias. Todos os dias chegavam ao Senado e à Câmara caixas de cartas, manifestos e abaixo-assinados contrários ou favoráveis à iniciativa. Em maio, uma comissão especial mista foi instalada para analisar as seis proposições divorcistas que tramitavam no Parlamento.
Em 14 de junho, uma terça-feira, elas entraram na pauta do Congresso para análise em primeiro turno, e a proposta de Carneiro e Acciolly foi a escolhida para ir à votação. O texto permitia a dissolução do casamento para quem já estivesse judicialmente separado há mais de três anos. Os divorcistas esperavam se beneficiar de uma alteração recente no Regimento: o quórum para aprovação, que antes exigia os votos favoráveis de dois terços dos parlamentares, havia sido reduzido para maioria absoluta (metade mais um). A mudança fora determinada pelo presidente Ernesto Geisel. Entre outras medidas para conter a oposição, Geisel diminuíra o quórum para aprovação de emendas constitucionais.
Os discursos dos divorcistas citavam a necessidade de extinção do malfadado desquite e regularização das famílias formadas em segundas uniões. Alegavam ainda que as separações já ocorriam, independentemente da existência do divórcio, e que ele seria apenas um instrumento legal para minorar o preconceito e dar segurança jurídica aos novos casais e a seus filhos. Os antidivorcistas, por sua vez, afirmavam que o divórcio desestruturaria a instituição da família, colocando em risco a própria sociedade brasileira. Incentivaria as separações, o amor livre, o aborto e a delinquência juvenil.
Lideranças religiosas também prometiam expor nas igrejas uma lista dos parlamentares que votassem a favor do divórcio, para que os fiéis lhes negassem votos na eleição do ano seguinte. “Era um momento grave no país, de incerteza, insegurança. Mas também de muita esperança de que haveria mudanças em todos os sentidos, inclusive na vida das pessoas, nas relações sociais. E uma das coisas importantes foi a discussão sobre o divórcio”, lembra o então deputado Airton Sandoval (PMDB-SP).
Se a posição da Igreja ficou clara, a de Geisel ainda suscitava dúvidas, mesmo faltando poucas horas para o início da votação, em 15 de junho. Os líderes do governo informaram em Plenário que o presidente não fechara questão sobre o divórcio. Em off, corria a informação de que Geisel, de religião luterana, era favorável à aprovação. Mesmo assim, muitos ainda temiam desagradar ao governo votando favoravelmente à proposta. A insegurança logo se desfez.
O senador Jarbas Passarinho (Arena-PA), vice-líder do governo, foi um dos primeiros a votar. O “sim” dele ao divórcio deixou claro que o governo não considerava o tema uma questão política e que os parlamentares estavam livres para votar a favor. Para Carneiro, isso facilitou muito a aprovação da emenda. A sessão de votação só terminou à 1h, já no dia 16. A emenda foi aprovada em primeiro turno com 219 votos a favor e 161 contrários. Na semana seguinte, passou pelo segundo turno. No dia 28, estava promulgada. Em vez de “o casamento é indissolúvel”, a Constituição passou a determinar que “o casamento poderá ser dissolvido desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos”.
Primeiros divorciados
Mas para que separados e desquitados pudessem enfim recorrer ao divórcio, era preciso aprovar uma lei para regulamentar a questão. Mais uma vez, foram Nelson Carneiro e Accioly Filho os autores do projeto que daria origem à Lei 6.515.
Apresentado em agosto, o texto passou pela Câmara, onde recebeu uma emenda para determinar que a pessoa só poderia se divorciar uma vez. Em 3 de dezembro, o projeto teve aprovação final no Senado e foi enviado à sanção. A essa altura, casais já se preparavam em todo o país para entrar com o pedido de divórcio.
Três dias depois da sanção, a juíza de paz fluminense Arethuza de Aguiar, então com 38 anos, tornou-se a primeira mulher a se divorciar no país. Ela estava desquitada havia cinco anos, mantinha uma relação cordial com o primeiro marido, pai de suas duas filhas, e vivia outro relacionamento conjugal.
Conhecedora do direito e defensora do divórcio, ao longo de 1977 Arethuza havia participado, como convidada, de programas de debate na TV em que defendia a causa. Quando a Lei 6.515 foi publicada no Diário Oficial da União, em 27 de dezembro, ela ligou para o ex e combinou encontrá-lo no dia seguinte em um cartório em Niterói (RJ), para que pudessem converter o desquite em divórcio.
A homologação do pedido, obtida em um dia, virou notícia em todo o país. Arethuza ganhou visibilidade nacional como “a primeira divorciada do Brasil” e passou a ser assediada pela imprensa. Ela conta que chegou a ser alvo de ofensas e “chacotas”, mas se impôs e não se deixou abalar. Aproveitou a notoriedade para continuar defendendo o divórcio.
“Foi difícil, mas não me senti agredida. Havia outro lado que lavava minha alma: o apoio daqueles que sonhavam transformar seu “concubinato” (cruel, não?) em um casamento legal. Era um sonho de milhares de pessoas que eu, indiretamente, pude ajudar”, diz ela, que, aos 79 anos, ainda atua como juíza de paz no Rio de Janeiro e já fez mais de 20 mil casamentos (Ag.Senado/ArquvioS).