A água no Brasil: da abundância à escassez
Garantir o acesso à água de qualidade a todos os brasileiros é um dos principais desafios para os próximos gestores do país. Culturalmente tratado como um bem infinito, a água é um dos recursos naturais que mais tem dado sinais de que não subsistirá por muito tempo às intervenções humanas no meio ambiente e às mudanças do clima
Foto: Marcello Casal Jr/ABr As gerações mais antigas foram criadas com o mito do país riquíssimo em água, que água seria um problema crônico, histórico, só no Nordeste, no semiárido. |
Débora Brito/ABr
Em várias regiões, já são sentidos diferentes impactos, como escassez, desaparecimento de nascentes e rios, aumento da poluição da água. Os problemas podem se agravar se não forem tomadas medidas urgentes e se a sociedade não mudar sua percepção e comportamento em relação aos recursos naturais.
O Brasil tem 12 regiões hidrográficas que passam por diferentes desafios para manter sua disponibilidade e qualidade hídrica. Mapeamento do Ministério do Meio Ambiente mostra que, nas bacias que abrangem a Região Norte, o impacto vem principalmente da expansão da geração de energia hidrelétrica. Na Região Centro-Oeste, é a expansão da fronteira agrícola que mais desafia a conservação dos recursos hídricos.
As regiões Sul e Nordeste enfrentam déficit hídrico e a Região Sudeste apresenta também o problema da poluição hídrica. O desafio é conter o aumento da temperatura do clima. O relatório especial do Painel das Mudanças Climáticas da ONU mostra que, se a temperatura global subir acima de 1,5°C, em todo o mundo mais de 350 milhões de pessoas ficarão expostas até 2050 a períodos severos de seca.
“As gerações mais antigas foram criadas com o mito do país riquíssimo em água, que água seria um problema crônico, histórico, só no Nordeste, no semiárido. Obviamente, desde 2013, na primeira crise que a gente teve, o apagão, que na verdade foi um “secão”, porque não foi resultado só de uma questão elétrica, ficou claro que o Sudeste e o Centro-Oeste têm problemas concretos, intensificados nos últimos dois anos, de disponibilidade de água”, destacou Ricardo Novaes, especialista em Recursos Hídricos do WWF-Brasil.
O pesquisador explica que a crise resulta também da falta de adequada gestão do uso da água, sobretudo em períodos de estiagem. “Temos indicativos de que há um risco de, no próximo verão, ou talvez no outro ano, termos novamente um quadro muito complicado em São Paulo, talvez em todo o Sudeste. Os reservatórios estão com níveis abaixo do que estavam há dois anos, antes da crise de 2014 e 15”, afirmou.
Depois da grave crise hídrica de 2015 que afetou a população de São Paulo, os moradores do Distrito Federal (DF) também passaram pelo primeiro racionamento nos últimos 30 anos devido à falta de água nas principais bacias que abastecem a região. Na área rural, o governo do DF decretou estado de emergência agrícola. Na época, foi estimado um prejuízo de R$ 116 milhões com a redução de 70% na produção de milho, segundo estudo da Secretaria do Meio Ambiente do DF.
Os especialistas apontam que uma das principais causas para a crise hídrica é o uso inadequado do solo. No Centro-Oeste, por exemplo, estão concentradas as nascentes de rios importantes do país. Conhecida como berço das águas, a região tem vegetação de Cerrado, bioma que ocupa mais de 20% do território e atualmente é um dos principais pontos de expansão da agropecuária, atividade que usa cerca de 70% da água consumida no país. Os efeitos da ausência da vegetação nativa para proteger o solo já são percebidos na diminuição da vazão dos rios e na escassez de água para abastecimento urbano.
Foto: Fabio Rodrigues/ABr Os especialistas apontam que uma das principais causas para a crise hídrica é o uso inadequado do solo. |
Segundo a coordenadora do programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Isabel Figueiredo, que integra a Rede Cerrado, o desmatamento acelerado está impactando tanto a frequência de chuvas, que vem diminuindo nos últimos cinco anos na região, quanto na capacidade do solo de absorver e armazenar a água no subsolo e devolvê-la para os rios.
“A mudança do uso da terra tem alterado demais o ciclo da água e faz com que a gente tenha menos água nos rios, os rios muito assoreados e menor disponibilidade de chuva. Então, o ciclo da água está num pequeno colapso”, afirmou Isabel. A especialista lembra ainda que o desmatamento do Cerrado não afeta somente as comunidades locais, que já relatam dificuldades para plantar, mas também outras regiões.
“Os biomas e ecossistemas brasileiros estão todos interligados. O desmatamento do Cerrado afeta a chuva que cai em São Paulo; o desmatamento na Amazônia afeta a chuva que cai aqui no Cerrado”, explica. Outro problema que leva à escassez de água é a estrutura precária de saneamento. Uma das principais preocupações com relação à água é garantir a universalização do saneamento.
Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), mais de 35 milhões de pessoas ainda não têm acesso à água tratada no Brasil e o sistema de abastecimento de água potável gera 37% de perdas, em média. A falta de tratamento do esgoto compromete mais de 110 mil km dos rios brasileiros que recebem os dejetos. A agência estima que, para regularizar a situação, seriam necessários pelo menos R$ 150 bilhões de investimentos em coleta e tratamento de esgotos até 2035.
Doutor em ecologia e autor de vários livros sobre educação ambiental, Genebaldo Freire destaca que todos estes problemas só serão resolvidos quando os governos e sociedade mudarem sua percepção sobre a importância dos recursos naturais para a sobrevivência humana.
“Estamos vivendo uma falha de percepção e temos algumas evidências objetivas que comprovam isso: dependemos de água pra tudo e qual é o nosso comportamento? Desperdício, consumismo, poluição e desmatamento, e isso tudo numa pressa danada, com uma população que cresce em 75 milhões de pessoas a cada ano no mundo”, constata.
Segundo o professor, não há lugar seguro no planeta e, além da falta de percepção, há uma absoluta falta de governança na gestão da água. O escritor também critica a indiferença e incapacidade da classe política em lidar com o tema da educação ambiental.
“A história dos problemas ambientais passa por essa falha de percepção por várias razões: conveniência, ignorância ou apatia. Todo o processo de educação ambiental hoje tem de estar obrigatoriamente centrado na ampliação da percepção, senão não vai mudar coisa alguma”, avalia Freire ao comentar que, para evitar o agravamento da situação, é necessária uma evolução do ponto de visto ético e moral e não somente científico e tecnológico.