Amadeu Roberto Garrido de Paula (*)
Não creio em salvador da lavoura. Creio em salvadores do país, em todos os brasileiros.
Por outras palavras, numa ampla mudança de nossos costumes políticos sedimentados no período superveniente à ditadura militar. A conquista da democracia não é apenas a derrota de uma ditadura. É o processo de construção de consciência de um regime de liberdade e justiça entre os homens. Sem muros físicos, políticos e até mesmo familiares. Por isso temos democracias e democracias. Muitos confundem democracia com uma Carta Popular e o funcionamento aberto das instituições.
Todavia, em muitas experiências históricas a Carta Magna não funciona em vários de seus pontos ideais – não logra “densidade normativa” – na linguagem dos juristas. É apenas o texto. E instituições enferrujadas são ineficazes e promotoras de frustrações generalizadas. Bem por isso, as democracias são classificadas numa espécie de escala de valores. Umas mais, outras menos aperfeiçoadas. Mas a última da escala não é uma ditadura. É uma democracia. Axiologicamente pobre, mas uma democracia.
Uma democracia jamais é uma ditadura. Democracia é democracia e ditadura é ditadura, com essa simplicidade o saudoso professor Goffredo da Silva Telles Júnior saudou uma estrela que brilhava sobre os céus da Faculdade e de Direito do Largo São Francisco, ao iniciar, logo após o segundo crepúsculo, sua memorável “Carta aos Brasileiros”. Aqueles que foram apanhados no jardim de sua juventude pelo militarismo autoritário de 1964 sabem bem do que falamos.
O Ministro da Cultura, Roberto Freire, com certeza. O aplaudido literato Raduan Nassar, não o sabemos. O primeiro teve sua voz calada e viveu, como tantos, o temor de descobrir que quem batia à nossa porta quando os primeiros raios de sol já vestiam estas terras de cruzes não era o padeiro.
Mais ainda: “interna corporis”, participou de pesados combates para reciclar-se, contribuir à formação do PPS e dar por encerrado o comunismo, que foi a miragem do velho Partidão por quase um século. Tendo enfrentado as balas amigas e os projéteis inimigos, não é, efetivamente, homem para ouvir calado despautérios contra um governo ao qual serve como Ministro.
Um ato que seria homenagem a mais nobre das atividades humanas – a literatura, em suas diversas formas – converteu-se em melancólicas dissensões e ombradas dadas por um grupo que insiste em tornar diviso e conflituoso nosso país. Será esse o caminho da felicidade nacional? Sim, de modo equivocado, para aqueles em que a liberdade e o respeito não são atributos da essencialidade humana, mas o direito de alinhar-se livremente a um grande plano ideológico, a um determinismo político no qual não podem estar errados seus conceitos, ajustados a um conjunto de regras – conservadoras ou revolucionárias.
Pensar, hoje, de um determinado modo, e amanhã, de outro, sem alinhamento, é suprema heresia que se pratica contra esse grande plano cósmico, universal, religioso, politicamente correto, inevitável. Diversamente do que dizia o Dr. Ulysses Guimarães, políticas não são nuvens; são um céu azul – deles – ou um céu borrascoso – o de seus inimigos.
Sem um conceito filósofico firme de liberdade, longe de adotar as lições momentosas de Isaiah Berlim, que reduziu a escombros os argumentos favoráveis ao totalitarismo marxista, leninista, stalinista e castrista, esse grupo que remanesce do petismo, não por obra do Senado ao aprovar o “impeachment”, mas que morreu conduzido pelo maior funeral político saído das urnas do Brasil, nas últimas eleições municipais, não tem nenhuma vocação para a autocrítica, o diálogo e juntar-se aos patriotas que, num governo efêmero e provisório, tentam debastar o mato da lavoura arcaica e triste.
Freire sabia das hostilidades que viriam e foi preparado para mais uma batalha. O pequeno auditório se preparara para passar ao diplomata português presente na solenidade a falsa ideia do golpe e seus desmembramentos contemporâneos. Os detratores não se deram conta do insólito de desancar uma “ditadura” que premiava um dos seus, “tête à tête” com um de seus ministros. Ou é ditadura ou é democracia. Saudades das aulas do professor Goffredo, todas elas, sem exceção, com jovens aplaudindo-o em pé, um fenômeno talvez nunca visto em outras academias.
Porque as coisas devem ser precisas, “simples assim”, salvo no campo da maravilhosa literatura fantástica, que não é a de Raduam e embalam nossos sonhos de sobreviventes. “Que paixão mais pressentida, que pestilências, que gritos!” (Raduan Nassar, “Lavoura Arcaica”, p. 9).
(*) – É poeta e autor do livro “Universo Invisível”. Advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.