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Eu saí pra sonhar meu país

em Opinião
quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Fernanda Ribeiro Haag (*) e Renan da Cruz Padilha Soares (**)

O trecho acima faz parte da música Carta à República composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, em 1987.

No contexto de redemocratização, os compositores ousaram sonhar um país em que “o povo era senhor”, como também coloca a canção. O que envolvia questionar, inclusive, qual República estava sendo construída. Para pensar a experiência republicana brasileira, precisamos fazer uma breve digressão. O feriado de 15 de novembro comemora a Proclamação da República, ocorrida em 1889. Um evento que marcou a história nacional e revela muito sobre o nosso processo histórico.

A monarquia foi derrubada e um golpe instituiu um governo provisório (e autoritário) tendo o Marechal Deodoro como primeiro presidente do Brasil. Deodoro, aliás, possuía inclinações monarquistas. Então vejamos: a República brasileira foi proclamada por um militar com tendências monarquistas através de um golpe. Não é exatamente um cenário onde o povo é senhor, certo? O historiador José Murilo de Carvalho analisou esse processo e afirma que a participação popular foi quase nula na queda institucional do Império.

O que não causa muito espanto, basta lembrarmos da política deliberada de marginalização de segmentos sociais no Pós-Abolição, sobretudo, pessoas racializadas. Isso quer dizer que o povo não participava da política na Primeira República? De forma alguma! Mas essa participação, em grande parte, passava ao largo do viés eleitoral e institucional. As intervenções ocorriam nas manifestações culturais, em revoltas populares, luta por direitos, nas festas e eventos, etc. Mas tudo isso já é muito revelador de elementos que permaneceram.

Podemos destacar dois deles: 1) o caráter frágil da democracia brasileira e marcadamente controlada por poucos. Basta lembrarmos que no século XX, o Brasil assistiu diferentes golpes de Estado: a revolução de 1930, um golpe das oligarquias nas próprias oligarquias; o Estado Novo de Getúlio Vargas; o golpe civil-militar de 1964. 2) A forte resistência popular em defesa da democracia e de seus direitos.
Diferentes parcelas da população sempre atuaram em prol de seus interesses, vale citar rapidamente alguns desses momentos: o Modernismo brasileiro; a coluna Prestes; o Queremismo; a Tropicália; as mais distintas oposições à ditadura civil-militar; a campanha pela Anistia; e a luta pela redemocratização do país nos anos 1980, das Diretas-Já à Assembleia Constituinte.

A partir da chamada Nova República, o Brasil viveu, comparativamente, um período mais estável e de consolidação democrática concreta. Contudo, quando passamos longos anos sem grandes rupturas institucionais, temos a tendência a naturalizar as coisas como são. Um erro. A história é um extenso e constante processo de transformações e continuidades, disputas de ideias, práticas e formas de pensar as sociedades humanas. A redemocratização – após o fim da ditadura civil-militar – alcançou trinta e cinco anos de idade.

Parece muito se pensarmos que é o tempo democrático mais duradouro em nossa história. Mas é extremamente curto se compararmos com a história de nosso país.
Nossa democracia apenas engatinha seus primeiros passos. E, como um bebê, precisa de cuidados para se desenvolver plenamente. Não vivemos em um regime democrático e republicano porque naturalmente é assim, mas porque milhões de mulheres e homens construíram experiências históricas que nos levaram a estarmos onde estamos hoje. Então essa tal democracia é perfeita?

Estamos falando de experiências humanas. Nada é perfeito. Mas é através da democracia que avançamos em questões importantes de participação popular, direitos humanos e o direito das minorias. A democracia e o regime republicano aqui no Brasil, com todos os seus problemas, deram voz para sujeitos históricos calados e marginalizados por séculos. Defender a democracia e a nossa República é defender a possibilidade de avançarmos e desenvolvermos mecanismos de inclusão e participação cada vez mais populares.

Neste ano, o feriado da Proclamação da República coincidiu com a realização das eleições municipais. Ainda que não seja o único espaço de participação política, as eleições cumprem um papel importante nesse processo. É na cidade que as desigualdades e problemas cotidianos ficam mais claros, por isso, o papel dos prefeitos é tão fundamental, assim como dos vereadores, que devem fiscalizar o executivo, propor e aprovar leis e votar a proposta de orçamento anual do município.
É nas cidades também que outras formas de construção política podem se concretizar de maneira mais acessível, como assembleias populares e orçamento participativo.

Essas eleições municipais podem ser encaradas ainda como um retrato da sociedade brasileira, revelando no que podemos avançar em nossa democracia. Trazemos, rapidamente, alguns dados significativos. Partindo no recorte de gênero, segundo dados do IBGE, as mulheres são 51,8% da população brasileira. Porém, pelos dados do TSE, na atual corrida eleitoral, elas são apenas 34% do total de postulantes ao cargo de vereadora e prefeita.

Pensando em termos de raça, no Brasil, 56,2% da população se reivindica preta ou parda. Esse ano, pela primeira vez, o número de candidaturas de pretos e pardos ultrapassou o número de candidaturas de brancos, somando 49,84% do total. E ainda assim, até o ano de 2020, apenas 29% dos prefeitos se declararam pretos ou pardos. E de prefeitas mulheres? Se o número de candidaturas já é baixo, nas eleições passadas (2016) apenas 12% dos municípios elegeram mulheres.

Fica evidente a diferença de representatividade nos cargos públicos municipais, pois parte significativa da população é efetivamente sub-representada nos postos de poder responsáveis por elaborar e executar políticas públicas com efeitos diretos em suas vidas cotidianas. Reforça-se, assim, a necessidade de consolidar e aprofundar as conquistas democráticas, pois se a República deve garantir os direitos a todos os seus cidadãos e cidadãs, é fundamental que todos os grupos sociais façam parte efetivamente às esferas decisórias.

Façamos como Milton e Fernando, ousemos sonhar (e construir) um país mais democrático no nosso dia a dia.

(*) – É doutoranda em História Social e professora da Área de Linguagens e Sociedade do Centro Universitário Internacional Uninter. (**) – É mestre em Práticas na Educação Básica e professor da Área de Linguagens e Sociedade do Centro Universitário Internacional Uninter.