Gaudêncio Torquato (*)
Um sentimento de mesmice invade a alma nacional. A luta política, que tende a se acirrar na arena do processo sucessório municipal, abrirá a conhecida guerra entre perfis cansados, bordões gastos e raros elementos de diferenciação.
Os gestores novos estão muito longe dos horizontes. Os opositores, por sua vez, preparam suas tubas para expressar um repertório de denúncias. Essas, porém, ao contrário do que seria de esperar, terão o efeito de anestesia social. A repetição cansativa de atos ilegais acaba embrutecendo a sensibilidade, como se uma pesada camada de chumbo passasse a cobrir os corpos.
O governo federal, após um ano e três meses, ainda não ganhou plena confiança da comunidade política. É reativo, não proativo. Os governadores estaduais mais se assemelham a dândis no meio da escuridão. Em seus gabinetes, já se sente o gosto de café requentado. Os parlamentares de todos os cantos, não apenas do centrão, correm pressurosos ao balcão das trocas, para saber qual a fatia que ainda lhes compete.
A disputa deste ano, mais uma vez, se transformará numa guerra de nomes sem grandeza. Os candidatos a prefeito e o rebanho de candidatos a vereador correm atrás de apoio dos partidos, menos em função de conceitos e programas, mas em função do tempo que poderão ganhar na mídia eleitoral. Os governos, nas três esferas, passam a ser atacados de maneira contundente, transformando-se, com certa razão, no maior bode expiatório das demandas.
As mazelas vêm à tona, a começar pela burocracia, responsável pela imprevisibilidade e improvisação dos Governos, pela departamentalização da eficácia econômica e pelas tensões na esfera da articulação. A barbárie política tem sido responsável pela construção do balcão das trocas e pela fragilização da base econômica. O ministro Fernando Haddad que o diga. Já a barbárie gerencial, associada aos vícios anteriores, consiste em ignorar a eficiência e a eficácia organizacional como elementos complementares básicos do manejo político e econômico. Há, até, um Ministério da Gestão na máquina federal. Que modelo criou?
A pior gestão, dizem os estudiosos de política, é aquela que consome o capital político do governante sem alcançar os resultados anunciados e perseguidos e isso ocorre por mau manejo técnico. Os dirigentes esquecem os compromissos de suas campanhas eleitorais, não fazem o cálculo do balanço da gestão e, principalmente, não a projetam para o futuro. Lula chegou ao seu terceiro mandato com a promessa de restaurar a credibilidade do governo, gerir o maior programa de obras da história, formar uma aliança ímpar com cerca de 20 partidos. O que se vê? Uma série de derrotas na frente congressual.
Os políticos, por sua vez, aproveitam-se das circunstâncias para levar vantagem. O momento é muito oportuno para aumentar os bornais. A alegação é que precisam irrigar o terreno das bases eleitorais com uma chuva de recursos. O Executivo tem um Ministério da Articulação, que se tornou um amplo confessionário de demandas. A par da Casa Civil, também um desaguadouro de pedidos. Os Executivos estaduais parecem desmotivados. Alguns mandatários já deram o gás que tinham de dar, e suas equipes deitam-se na cama do ócio, enquanto os círculos mais íntimos locupletam-se de benesses. Começam a olhar os horizontes de 2026. O Brasil é um eterno vivenciar de eleições, um evento que ocorre a cada dois anos. Razão pela qual a fome de recursos se alastra por todos os recantos.
A máquina administrativa, por sua vez, precisa ser submetida a um forte impacto. Está anestesiada. Parece não sentir o cheiro de povo, não ouve o grito rouco das ruas. Hiberna em uma densa e fria camada de gelo. Governo nenhum elege sucessor quando se descola do sentimento popular. Procurar a bússola perdida, caminhar na direção correta, processar com eficácia as ações, ter capacidade para gerenciar problemas e encontrar soluções, evitar fricções irreparáveis, entrar em regime de mutirão, buscar intensamente o foco – essa é a alternativa que requer atenção de todos os governantes. Só assim poderão despertar os sentimentos adormecidos da sociedade e gerar novas percepções.
De tanto olhar a escuridão, o olho se acostuma a olhar para o nada. E não percebe os vazios do ambiente. É mais ou menos assim o olhar de quem governa. Há imensos vazios no espaço social. Por isso, os eleitores estão distantes dos velhos atores que ensaiam no palco. No plano municipal, fincam-se as bases do edifício da política. A renovação dos pilares começa com novas camadas de cimento e cal. Infelizmente, é na base que residem os entraves a um novo modus operandi da política. Dos 5.570 prefeitos, a imensa maioria ainda pertence ao habitat das velhas tradições.
Ao correr deste 2024, quem surgir encarnando a voz da autoridade, do zelo, dos resultados palpáveis, dará boas respostas à indignação social. Os eleitores não confiam mais em promessas mirabolantes. Muita água há de rolar. Como rugiu Zaratustra, o profeta de Nietzsche: “não apenas a razão dos milênios – também a sua loucura rompe em nós. É perigoso ser herdeiro. Ainda lutamos, passo a passo, com o gigante chamado acaso”.
(*) – É escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.