Ricardo Figliolini (*)
Dentre as mudanças e evoluções mercadológicas, a confiança no processo é algo indiscutível para se chegar a novos e melhores lugares. No final do ano passado, o Banco Central (BC) publicou um conjunto de resoluções, com destaque para a Resolução BC 264.
Ela atualiza a regulamentação do sistema de registro de recebíveis de arranjo de pagamento, que por simplicidade vou chamar de sistema de registro, que já vem rodando a aproximadamente um ano e meio, o que deu tempo para o BC aprender como o mercado realmente opera o sistema, e agora atualizar suas regras em um ambiente de discussões mais objetivas.
Essa atualização apazigua a ‘turma do deixa disso’ e nos aproxima ainda mais do espírito original da regulação: dar liquidez a mais de R$ 3 trilhões em recebíveis que estão nas mãos de varejistas do Brasil todo. Os efeitos da publicação passarão a vigorar em dois momentos deste ano: junho e novembro.
Daqui até lá ainda existem etapas importantes, como a publicação da nova convenção das registradoras em fevereiro, que passará a integrar a própria regulação, detalhando os níveis mais técnicos e operacionais do sistema. A nova regulação é positiva para os varejistas que buscam alternativas na hora de usar seus recebíveis para melhor gerir seus fluxos de caixa, mas ainda deixa temas a serem esclarecidos na convenção. Seguem abaixo alguns pontos de destaque.
. – Mais clareza, mais negócios – Desde junho de 2021, varejistas de qualquer tamanho já podem negociar seus recebíveis de cartão com terceiros fora do ecossistema das adquirentes, a novidade é que o BC trouxe mais clareza para a regra do que compõe o valor desses recebíveis.
Em sua primeira versão o BC definiu de forma clara como agrupar os valores das transações em pacotes chamados Unidade de Recebível (UR), mas não deu uma definição para potenciais deduções dos valores dessas URs, numa clara intenção de deixar o mercado se autorregular primeiro.
O que aconteceu foi que algumas adquirentes e subadquirentes buscaram em suas próprias interpretações formas de tornar os recebíveis menos atraentes para o mercado, dificultando a vida de varejistas que queriam negociar seus recebíveis. Foram criadas distorções e incertezas que buscavam manter a reserva de mercado das adquirentes, e em parte atrasaram o progresso do sistema.
Com a nova regra o BC manteve a definição básica de UR, e incluiu trechos que definem o que pode ser deduzido delas. O voto que pede a atualização da regulação fala acertadamente em minimizar incertezas e não prejudicar os varejistas.
Adquirentes agora podem fazer bloqueios de valores para defender não só o recebimento dos valores de serviços e obrigações contratadas pelos varejistas, mas também os riscos associados ao fluxo de pagamentos, como estornos e chargebacks. Esses bloqueios são constituídos pelas adquirentes com recebíveis e/ou dinheiro dos próprios varejistas, para assegurar o fluxo de pagamento.
Quando os varejistas decidem negociar seus recebíveis com terceiros, através do sistema de registro, não podem se beneficiar dessa reserva já constituída com seus próprios recursos. Cada nova negociação que o varejista faz com um novo financiador acarreta uma nova análise do mesmo fluxo já segurado pela adquirente, mas que o novo financiador não pode ter acesso.
Essa ineficiência limita significativamente a capacidade desse varejista se financiar, no limite ele pode ter dois “bloqueios” para assegurar o mesmo fluxo.
. – Verdade única – Outro ponto de destaque é o aprofundamento do entendimento de que o sistema de registro é a verdade única sobre o status dos recebíveis dos varejistas. O novo texto traz a responsabilidade da adquirente mostrar não só o valor de recebíveis que estão registrados no sistema, mas também as negociações, bloqueios e todos os efeitos refletidos no sistema de registro.
Evoluções como esta dão mais isonomia ao sistema, fortalecendo a competição de mercado e inibindo comportamentos de incumbentes que buscam se defender usando de desinformação.
. – Nessa casa de ferreiro o espeto não é mais de pau – Com o espírito de trazer competição a um mercado historicamente cativo, o BC também se atentou à competição entre as próprias registradoras. Novas entrantes como a B3 podem se beneficiar da nova regra de portabilidade, que define prazos para sua execução e dá liberdade aos usuários para escolherem a melhor registradora para seus negócios, mesmo depois de já estarem operando com outra registradora.
. – Responsabilidade e isonomia – A maior inclusão de texto diz respeito ao papel das registradoras, que passam a ter mais responsabilidade perante o bom funcionamento do sistema de registro e em salvaguardar sua isonomia. Práticas que buscavam criar artificialmente vantagens competitivas para uma ou outra registradora estão com seus dias contados.
O sistema de registro e seus participantes só têm a ganhar com isso. Uma curiosidade interessante é ver como o BC incorporou na nova regulação elementos da antiga convenção das registradoras, algo que reforça a posição de um BC que interage positivamente com o mercado.
. – Considerações gerais – A nova regulação evoluiu buscando objetividade, é notório que discussões como as do início de 2021 que botavam em xeque elementos básicos ou até a própria existência do sistema não fazem mais nenhum sentido. A chave para melhorar a vida de milhões de varejistas me parece estar na isonomia que o BC busca, mas precisamos dobrar a aposta nesse tema.
O sistema é complexo, e pequenas vantagens artificiais aqui e ali podem ter impactos na velocidade de adoção, na manutenção dos mercados cativos dos incumbentes e no impacto social positivo que essa regulação tem tanto potencial de atingir.
(*) – É sócio e responsável pelas áreas de negócios e estratégia da Marvin, fintech que oferece um método de pagamentos B2B utilizando os recebíveis de cartão (https://www.marvin.com.vc/).