Denize Dutra (*)
O número de artigos com títulos ou resumos contendo felicidade, satisfação com a vida ou bem-estar subjetivo cresceu tão expressivamente, que recentemente identificou-se mais de quatro mil publicações por ano. O número de artigos sobre felicidade começou a aumentar com o avanço das ciências psicológicas e da economia da felicidade, quando surgiram alguns artigos isolados nas décadas de 1970 e 1980, mas o interesse cresceu substancialmente a partir de meados da década de 1990.
Apesar de métodos e descobertas começarem a ser aceitos dentro da academia, naquela época ainda não eram enfatizados no ensino e nas práticas da gestão nas organizações. Talvez por isso ainda não transformaram o foco da análise do bem-estar econômico em políticas públicas e mesmo corporativas, que assegurem mais felicidade para o ser humano. Há sinais de amadurecimento conceitual e maior mensuração estatística sobre a felicidade, como é o caso do Relatório Mundial da Felicidade, que apresenta um ranking dos países mais felizes do mundo, dentre os 146 que participam da pesquisa.
Observa-se no relatório que organizações, acadêmicos e governos tentam definir progresso através da criação de um novo conjunto de indicadores, que incluem cada vez mais medidas de felicidade. Foram pelo menos quatro décadas para as revistas científicas aceitarem publicações sobre um tema tão relevante para a humanidade. Houve acadêmicos que rebatizaram a felicidade – chamando-a, de bem-estar subjetivo – para que os seus estudos empíricos fossem aceitos pelas mais exigentes publicações científicas, porque a palavra felicidade ficou associada à falta de cientificidade, ao esoterismo, papo de autoajuda.
Paralelamente, neste mesmo período, a tecnologia também teve um grande avanço. Apesar do primeiro computador ter sido criado em 1946, durante a Segunda Guerra Mundial, conhecido por ENIAC (sigla para Electronic Numerical Integrator Analyzer and Computer), desenvolvido pelos cientistas norte-americanos John Eckert e John Mauchly, foi nos anos 70 que surgiram os computadores pessoais e que a Microsoft foi criada. Somente em 1992 a primeira rede mundial de computadores, a World Wide Web, foi criada pelo cientista Tim Berners-Lee, cujas siglas WWW são utilizadas até hoje para a identificação do navegador da internet. Este evento permitiu o surgimento das Redes Sociais.
Nos anos 2000, os smartphones e tantas outras tecnologias impactaram o comportamento humano e consequentemente padrões sociais. O termo ¨Inteligência Artificial¨ apesar de criado em 1956, só agora faz parte do nosso cotidiano nos mais variados contextos. Com ajuda da?Internet das Coisas, Big Data, Machine Learning,?Business Intelligence?e outras inovações, a IA tornou informações acessíveis e automatizou processos que hoje são usados em diversos campos, como na ciência e tecnologia.
Agricultura, indústria e serviços foram altamente impactados pela automação e pela robótica, com isto, os processos e a gestão tiveram de ser readequados exigindo competências antes inexistentes e hoje essenciais para manter a trabalhabilidade. A automatização permite que tarefas extremamente padronizadas e repetitivas sejam feitas por máquinas liberando os humanos para as tarefas mais complexas, elaboradas, que envolvam criação, tomada de decisão, relacionamento. Aqui começa a fazer sentido a relação entre os dois temas introduzidos até o momento: felicidade e tecnologia.
. A felicidade no ambiente de trabalho – Estudos mostram que a natureza da atividade realizada no trabalho, o sentido que o indivíduo atribui ao seu trabalho, o grau de desafio que ele promove, a realização pelo objetivo alcançado, o desenvolvimento de novas habilidades e a qualidade dos relacionamentos construídos com pares e líderes, são alguns dos elementos que influem na percepção de felicidade no trabalho.
A tecnologia se utilizada eticamente e a serviço do bem-estar coletivo pode contribuir com a felicidade das pessoas no trabalho, não apenas pelo exposta acima, mas porque facilita inúmeras tarefas que demandariam mais esforço físico e mental, criando melhores condições de trabalho e vida, aumentando a qualidade de vida. Outra perspectiva é a da aproximação das distâncias, permitindo interações multiculturais, que podem gerar aprendizados e desenvolvimento de novas habilidades.
Considerando que a organização social onde o indivíduo passa a maior parte de seus dias é a organização laboral, é fundamental olhar a para a felicidade no trabalho de forma sistêmica e ter em conta toda a jornada do colaborador. Concretizar ações para que os colaboradores se sintam bem, engajados, mais alegres, leves ou animados, exige intervir na qualidade das lideranças, na justiça e equidade, no cuidado em manter o contrato psicológico e um vínculo contratual estável, na coerência interna entre valores anunciados e praticados, na conciliação vida pessoal e profissional, na dignidade de trato com cada profissional.
É preciso trabalhar a cultura das organizações para criar as condições propícias à felicidade e hoje muitas empresas já dispõem de sistemas altamente sofisticados (com uso de IA) para gerar dados que permitam a personalização de estratégias de desenvolvimento, de benefícios e outros aspectos importantes na experiência positiva do colaborador.
Um estudo realizado pela Universidade da Califórnia identificou que um trabalhador feliz é, em média, 31% mais produtivo, três vezes mais criativo e vende 37% a mais em comparação com outros. Além disso, ele acaba motivado a atender melhor o cliente, evitar acidentes no trabalho e reduzir desperdícios. Os pesquisadores Corey Keyes e Carol Ryff criaram um modelo teórico de bem-estar psicológico que engloba seis dimensões distintas: autonomia, competência, senso de crescimento e desenvolvimento pessoal, relações positivas com os outros, propósito de vida e autoaceitação.
Este estado de bem-estar gera ambientes mais saudáveis e seguros, que estimulam a criatividade e a lidar com erros como forma de aprendizado, promovendo condições necessárias à inovação, que é o cerne do desenvolvimento tecnológico. Em tempos de aceleração digital, quando a tecnologia vem sendo cada mais protagonista e só aumentam os questionamentos sobre seus impactos, como, por exemplo, ChatGPT, o tema da humanização (ou desumanização) está cada vez mais na pauta. E se tem algo que é intrínseco à natureza humana, é a busca pela felicidade.
Talvez, isto explique a necessidade de ter até funções específicas para conseguir fazer florescer (um termo muito valorizado pelos estudiosos destas áreas) a felicidade dos trabalhadores, como acontece com os Chief Happiness Officers (CHO). Sem descrições de função bem definida, estes novos fazedores da felicidade aventuram-se em experiências coletivas que assegurem que os colaboradores estejam suficientemente felizes para produzir mais, estarem comprometidos com a organização, serem mais colaborativos e dedicados, terem menos licenças médicas e menor turnover, serem mais bem avaliados pelos supervisores e chefias, produzirem bons efeitos sobre os clientes, enfim, todos dados que a ciência confirma.
O que se faz em nome da felicidade deve ser enraizado na ciência. Para tal, quem assume estas novas funções de CHO deve formar-se na ciência da felicidade, usufruindo de décadas de dados empíricos, que trazem evidências (facilitadas pela tecnologia) de que a felicidade no trabalho é possível, mas alcançá-la não é algo fácil, já que exige uma série de fatores intrínsecos e extrínsecos que podem mudar de uma pessoa para outra.
Cada empresa tem suas particularidades, por isso, antes de tudo, é preciso entender a proposta da organização, sua cultura e o perfil dos colaboradores para chegar a uma ideia sobre o que funciona ou não, o que otimiza a felicidade, o que é indiferente e o que a destrói, porque se deve escolher uma ou outra prática organizacional. Essa é uma grande dificuldade, que pode ser vencida com o tempo e com a constância da prática. O simples fato de saber que felicidade importa para a organização, certamente, já muda o jeito de se ver a empresa e consequentemente, o orgulho de pertencer à mesma.
Na perspectiva individual, o que a ciência entende como felicidade hoje leva à junção de três elementos: uma parte química, que se dá no organismo de cada pessoa, resultante dos níveis de serotonina, oxitocina e dopamina, que impacta o humor de cada um; as circunstâncias em que o indivíduo vive e o seu grau de aderência ou conformidade a isso, inclusive a incorporação da tecnologia no seu cotidiano, como deixou claro a pandemia. E o terceiro elemento é a atitude de cada um em relação aos primeiros dois elementos, a química e a circunstância.
Em resumo, “a felicidade é o produto da soma da química com a circunstância combinada com atitude individual e tem maior relação com o contentamento com o que temos, do que com o que nos falta”. Mas, é a prática das virtudes, enraizada na ética, que enriquece tudo o que é bem-comum, e que fará da felicidade um recurso genuíno e realmente mobilizador do melhor das pessoas e dos coletivos para a construção de organizações mais humanas, mais saudáveis e de maior impacto no progresso da ciência e da tecnologia e no bem-estar da sociedade em geral.
(*) – É Doutora em Administração. Consultora, Coach, Professora Convidada da FGV e colunista do MIT Technology Review do Brasil.